Bem-aventurado aquele que tem o Deus de Jacó por seu auxílio e cuja esperança
está posta no Senhor, seu Deus.
Salmos 146:5
Sammis Reachers
Uma das chamadas três virtudes
teologais, citadas pela apóstolo Paulo em 1Co 13.13 (ao lado da Fé e do Amor) a
Esperança é, das três, talvez a virtude menos considerada, e no entanto
parece-me ser a mais inatamente presente no ser humano.
Mas quem é essa menina, essa
força invisível, esse brilho nos olhos
que é a Esperança? Por que a Esperança resiste tão fortemente, mesmo esmagada e
esquecida no fundo de uma cela? Mesmo de joelhos dobrados à coronhadas, mesmo
diante do pelotão, com armas apontadas para sua cabeça de olhos vendados,
inchados de tanto levar socos, torturada? Mesmo diante do sorriso imundo de
Satanás, como essa força, essa menininha, a esperança no escape, a esperança no
bem, a esperança no Altíssimo, resiste no subsolo deste edifício implodido que
é o homem? Tenho uma definição para a Esperança: Rebelião contra a Queda.
A Esperança, a inata (por Deus
plantada) rebelião contra a Queda
viva no coração humano, quando alcança a graça de encontrar seu objeto na
epifania (manifestação física da divindade) Jesus Cristo, torna-se de Rebelião em Revolução. Mas ainda em estágio de Rebelião, manifesta-se já sua
maior singularidade: a Esperança humana, mesmo antes do nascimento de Cristo e
mesmo para aqueles que, ontem ou hoje, nunca o conheceram, é já Cristo abraçando o
mundo por toda a extensão da história, do homem; é ela própria a ‘eternidade que Deus pôs no coração de todo
homem’ (Ec 3.11).
Talvez você tenha já ouvido falar no Fator Melquisedeque, um
conceito fundamental em Missiologia, e que foi proposto pelo antropólogo Don
Richardson, em seu livro de mesmo nome. Num resumo wikipediano, lê-se que “O Fator Melquisedeque é designação dada à consciência universal da existência de um Deus
único, entre as diversidades de expressões culturais e religiosas dos
diferentes povos e civilizações ao longo da história.” É como um ‘gancho’ deixado
por Deus em cada cultura, para facilitar a posterior assimilação da Revelação
do Evangelho.
Pois entendo nossa menininha, a
Esperança, como a expressão básica, elementar, a molécula feita e utilizada para
erigir no homem aquilo que Don Richardson definiu como o Fator Melquisedeque. Uma
outra metáfora: a Esperança como os tijolinhos que formam o templo vazio que
nasce junto com cada filho de Adão, templo este que tem o tamanho exato de
Deus, pois feito sob estrita medida. O homem nasce um templo vazio, mas feito
de Esperança. A Esperança, tudo o que nos restou, é o edifício pronto para
recebê-Lo (a Deus) em nós. A Esperança é a mão que em nós o Espírito Santo usa
para segurar o outro lado da corrente, a Mão de Deus.
Jurgen Moltmann, teólogo alemão,
proponente da principal corrente da assim chamada Teologia da Esperança, e que,
soldado da Alemanha derrotada na Segunda Guerra, foi mandado para campos de
prisioneiros de guerra na Irlanda, nos diz:
“Vi homens nos campos que haviam perdido a esperança. Eles simplesmente
se entregavam, adoeciam e morriam. Quando na vida a esperança hesita e se
desfaz, uma tristeza que vai além de todo o consolo toma conta da pessoa. Já a
esperança incomoda e inquieta. A pessoa não se contenta mais com a situação,
com a forma como as coisas estão.”
Moltmann foi inspirado pelo
filósofo alemão Ernst Bloch, para quem todo ser humano é instintivamente dotado
de esperança, é insuflado a buscar – avançando - a Utopia sonhada. Bloch era ateu e marxista revisionista; tinha,
portanto, uma visão secular para qual seria a Utopia sendo perseguida pelo
homem. Utopia esta que Moltmann corretamente entende como o Reino vindouro de
Cristo, cuja ressurreição e ascensão são as marcas patentes da promessa de seu
Retorno, são como que os próprios signos da Esperança.
Se Moltmann era soldado um alemão
aprisionado em campos de concentração dos vencedores Aliados, e que durante seu
sofrimento em meio a tal situação achegou-se à esperança cristã, na outra face
desta estranha moeda, o psiquiatra judeu Viktor Frankl, contemporâneo de
Moltmann, desenvolvia as bases de sua Logoterapia, enquanto prisioneiro também
em campos de concentração, mas como prisioneiro dos alemães.
Frankl, tendo perdido
praticamente toda a sua família para a máquina de extermínio de Hitler,
agarrou-se (ele também) à Esperança (entendida, em suas próprias palavras, como
‘fé no futuro e vontade de futuro’), e desenvolveu sua doutrina baseado na
valorização da esperança (otimismo) como sentido para a vida. Frankl cedo
percebeu no homem um vazio causado pela ‘vontade de Sentido’, e concluiu
(renegando aqui seus predecessores e antigos ‘mestres’ Freud e Adler)
acertadamente que esse vazio tem origem espiritual, e desse vazio decorrem os
principais problemas psíquicos do homem.
Repito aqui a pergunta feita
acima: que força é essa que resiste no subsolo do edifício homem, mesmo quando
este edifício é implodido? Ambos os prisioneiros poderiam ter desistido de suas
vidas e se entregado, mas ambos vislumbraram, cada qual a seu modo, a
Esperança, e agarraram-se a ela com todas as suas forças, com tudo de si. E
passaram a desenvolver suas doutrinas tendo ela por fundamento. Não é algo
fascinante? Continuemos com Frankl:
“Estás no valo
trabalhando. O crepúsculo que te envolve é cor-de-cinza, o céu acima é
cinzento, cinzenta a neve no pálido lusco-fusco, os trapos dos teus
companheiros são cinzentos, e também os semblantes deles são cor-de-cinza.
Retomas outra vez o diálogo com o ente querido. Pela milésima vez lanças rumo
ao sol teu lamento e tua interrogação. Buscas ardentemente uma resposta, queres
saber o sentido do teu sofrimento e de teu sacrifício - o sentido de tua morte
lenta. Numa revolta última contra o desespero da morte à tua frente, sentes teu
espírito irromper por entre o cinzento que te envolve, e nesta revolta
derradeira sentes que teu espírito se alça acima deste mundo desolado e sem
sentido, e tuas indagações por um sentido último recebem, por fim, de algum
lugar, um vitorioso e regozijante ‘sim’.”
Ao erigirem a Esperança como sua
interna rebelião contra a derrota, a
solidão, o vazio e a morte, ambos venceram. É Agostinho de Hipona quem diz: “A Esperança tem duas filhas lindas, a
indignação e a coragem; a indignação nos ensina a não aceitar as coisas como
estão; a coragem, a mudá-las.”
Causa fascinação que em
situações extremas, de dor radical, holística (abarcando todas as dimensões do
humano), essa virtude resista combatendo no coração desses e de tantos outros
homens? Mas é isso mesmo que ela é, o Princípio
Combatente no coração do homem, a arma do Santo Espírito. Mesmo atirada ao
fundo lamacento do poço, como José, como Jeremias, ela escava, ela escala, ela
acredita - e oferece um sorriso para insuflar os mutilados.
Há um poema de um grande poeta
cristão francês, Charles Péguy, que, em seu estilo intimista e desabusado, e
que faz tão bom uso das repetições (talvez como nenhum outro poeta que eu
conheça), fala oportunas palavras sobre essa menina magricela, mas apaixonante
e veementemente forte, a Esperança. Coligi esse poema na Breve Antologia daPoesia Cristã Universal que organizei. É um pouco extenso, mas vale a pena você
ler.
A Esperança
Tradução de Guilherme de Almeida
A crença de que
eu gosto mais, diz Deus, é a esperança.
A fé, isso não
me espanta.
Isso não é
espantoso.
Eu resplandeço
de tal maneira na minha criação.
No sol e na lua
e nas estrelas.
Em todas as
minhas criaturas.
Nos astros do firmamento
e nos peixes do mar.
No universo das
minhas criaturas.
Sobre a face da
terra e sobre a face das águas.
No movimento
dos astros que estão no céu.
No vento que
sopra sobre o mar e no vento que sopra
no vale.
No calmo vale.
No tão quieto
vale.
Nas plantas e
nos animais e nos animais das florestas.
E no homem.
Minha criatura.
Nos povos e nos
homens e nos reis e nos povos.
No homem e na
mulher sua companheira.
E
principalmente nas crianças.
Minhas
criaturas.
No olhar e na
voz das crianças.
Porque as crianças
são mais minhas criaturas.
Do que os
homens.
Elas não foram
ainda desfeitas pela vida.
Da terra.
E entre todos
elas são meus servidores.
Antes de todos.
E a voz das
crianças é mais pura do que a voz
dos ventos na
calma do vale.
No vale tão
quieto.
E o olhar das
crianças é mais puro do que o azul do
céu, do que o
leitoso do céu, e do que um raio
de estrela na
calma noite.
Ora eu
resplandeço de tal maneira na minha criação.
Na face da
montanha e na face da planície.
No pão e no
vinho e no homem que lavra e no homem
que semeia e na
messe e na vindima.
Na luz e nas
trevas.
E no coração do
homem que é o que há de mais
profundo no
mundo.
Criado.
Tão profundo
que é impenetrável a todo olhar.
Exceto ao meu
olhar.
Na tempestade
que faz cabriolar as ondas e na
tempestade que
faz cabriolar as folhas.
Das árvores da
floresta.
E ao contrário
na calma de uma bela tarde.
Na areia do mar
e nas estrelas que são uma areia
no céu.
Na pedra do
limiar e na pedra da lareira e na pedra
do altar.
Na oração e nos
sacramentos.
Nas casas dos
homens e na igreja que é minha casa
sobre a terra.
Na águia minha
criatura que voa sobre os píncaros.
A águia real
que tem pelo menos dois metros de
envergadura e
talvez três metros.
E na formiga
minha criatura que rasteja e que armazena
um pouquinho.
Na terra.
Na formiga meu
servidor.
E até na
serpente.
Na formiga
minha serva, minha ínfima serva, que
armazena a
custo, a parcimoniosa.
Que trabalha
como uma desgraçada e que não tem
mesmo folga e
que não tem mesmo descanso.
A não ser a
morte e o longo sono de inverno.
Eu resplandeço
de tal maneira em toda a minha criação.
.......................... ........................... .....................
A caridade, diz
Deus, isso não me espanta.
Isso não é
espantoso.
Essas pobres
criaturas são tão infelizes que a não ser
que tivessem um
coração de pedra, como não
haveriam de ter
caridade umas para com as outras.
Como não
haveriam de ter caridade para com seus irmãos.
Como é que eles
não haviam de tirar o pão da boca,
o pão de cada
dia, para dá-lo a desgraçadas
crianças que
passam.
E meu filho
teve para com eles uma tal caridade.
Meu filho irmão
deles.
Uma tão grande
caridade.
Mas a
esperança, diz Deus, eis o que me espanta.
A mim mesmo.
Isso é
espantoso.
Que essas
pobres crianças vejam como tudo isso acontece
e acreditem que
amanhã vai ser melhor.
Que vejam como
isso acontece hoje e acreditem que vai
ser melhor
amanhã cedo.
Isso é
espantoso e é mesmo a maior maravilha da nossa
graça.
E eu mesmo me
espanto com isso.
E é preciso que
de fato minha graça seja de uma força
incrível.
E que ela
escorra de uma fonte e como um rio
inesgotável.
Desde aquela
primeira vez que ela escorreu e escorre
sempre desde
então.
Na minha
criação natural e sobrenatural.
Na minha
criação espiritual e carnal e ainda espiritual.
Na minha
criação eterna e temporal e ainda eterna.
Mortal e
imortal.
E aquela vez, ó
aquela vez, desde aquela vez que
ela escorreu,
como um rio de sangue, do flanco
trespassado de
meu filho.
Qual não deve
ser a minha graça e a força da minha
graça para que
essa pequena esperança, vacilante
ao sopro do
pecado, trêmula a todos os ventos,
ansiosa ao
menor sopro,
seja tão
invariável, mantenha-se tão fiel, tão reta,
tão pura; e
invencível, e imortal, e impossível
de apagar-se;
que essa pequena flama do
santuário.
Que queima
eternamente na lâmpada fiel.
Uma chama
tiritante atravessou a espessura dos mundos.
Uma chama
vacilante atravessou a espessura dos tempos.
Uma chama
ansiosa atravessou a espessura das noites.
Desde aquela
primeira vez que a minha graça escorreu
para a criação
do mundo.
Desde então que
a minha graça escorre sempre para a
conservação do
mundo.
Desde aquela
vez que o sangue do meu filho escorreu
para a salvação
do mundo.
Uma chama
impossível de se alcançar, impossível de se
apagar ao sopro
da morte.
O que me
espanta, diz Deus, é a esperança.
Eu fico pasmo.
Essa pequena
esperança que parece uma cousa de nada.
Essa pequena
esperança.
Imortal.
Porque as
minhas três virtudes, diz Deus.
As três
virtudes minhas criaturas.
Minhas filhas minhas
crianças.
Elas próprias
são como as minhas outras criaturas.
Da raça dos
homens.
A Fé é uma
Esposa fiel.
A Caridade é
uma Mãe.
Uma mãe
ardente, cheia de coração.
Ou uma irmã
mais velha que é como uma mãe.
A Esperança é
uma meninazinha de nada.
Que veio ao
mundo no dia de Natal do ano passado.
Que brinca
ainda com o boneco de neve.
Com seus
pinheirinhos de madeira da Alemanha cobertos
de geada
pintada.
E com seu boi e
seu jumento de madeira da Alemanha.
Pintados.
E com seu
presépio cheio de palha que os animais não
comem.
Porque elas são
de madeira.
Entretanto é
essa meninazinha que atravessará os
mundos.
Essa
meninazinha de nada.
Ela só, levando
os outros, que atravessará os mundos
volvidos.
* * *
Esperança humana:
Rebelião contra a Queda, com Cristo tornada Revolução contra a Queda. Muitos
não suportam esta palavra, mas o que dizer? O Cristianismo é mesmo
fundamentalmente revolucionário.
* * *
Moltmann, Jürgen. Citado
por Ed. L. Miller em Teologias Contemporâneas (São Paulo: Vida Nova, 2011).
Frankl, Viktor E.. Em Busca
de Sentido (Petrópolis: Editora Vozes, s/d).
Péguy, Charles. Breve
Antologia da Poesia Cristã Universal (Edição eletrônica, org. Sammis Reachers,
2012).
2 comentários:
Acabei de encontrar este blog. Desejo associar-me. É possível? Tem como colocar um selo em meu blog para anunciar este blog. Venha fazer uma visita em meu blog tmb. Será um prazer. Já estou te seguindo. Agradeço a atenção. Deus continue abençoando.
Excelente, meu irmão.
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