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quarta-feira, janeiro 03, 2018

Âncora cristã para a pós-modernidade

Cristo na Tempestade - Pintura de Rembrandt

Por: João Cruzué

O desencanto da sociedade com a religião e depois com a ciência é a principal característica da pós-modernidade. E não parou por aí. No rastro destes dois pilares seguiu-se a política, a justiça e a imprensa.  Assim como na época do Renascimento, um espírito de inconformismo e insatisfação paira sobre tudo e todos,  até mesmo sobre a própria pós-modernidade.

Posso comparar esta época com a situação enfrentada por alguns pescadores no Mar da Galileia, há dois milênios, onde a a fúria do mar e a força do vento, que pareciam incontroláveis, se acalmaram pelo som das palavras de um homem.

Quero começar com a  Operação Lava-Jato, um dos agentes da pós-modernidade no Brasil. Ela desnudou e vem  desnudando com fotos, vídeos e gravações a forma centenária de como o poder do dinheiro vem comprando a consciência dos políticos no Brasil - aos MILHARES. desencanto. A forma como o Ministério Público tratou dos acordos de delação levou o Judiciário a aplicar penas brandas a grandes larápios do dinheiro público. Transparência e desencanto como os agentes da Lava-Jato.

A Igreja Evangélica, minha casa, também enfrenta os efeitos da pós-modernidade. A forma com que algumas denominações "arrecadam" os recursos do bolso dos fiéis é uma ofensa à prudência paulina dos capítulos 8 e 9 da II Carta aos Coríntios. Desde quando o Apóstolo Paulo, em nossos dias, ira tomar os dízimos e ofertas do povo de Deus para comprar uma rede de TV para transmitir novelas, filmes e programas indecentes? De que livro da Bíblia Sagrada veio a inspiração para Igrejas fundarem partidos políticos seculares? Com que autoridade um Pastor Presidente pode aparecer em um culto de Santa Ceia para apresentar pastores ou familiares a pré-candidatos a cargos de representação política? Não deviam eles anunciar nestas ocasiões e lugares um plano nacional de evangelização ou um novo campo de atuação missionária? Transparência e desencanto.

A Ciência que "deveria" soterrar a religião, empacou no sequenciamento do DNA humano. Depois de "sequenciado" trouxe mais dúvidas que certezas. O câncer ainda não tem cura, a AIDS ainda não tem cura. A tuberculose nunca esteve matando tanto. E no Brasil a febre amarela e o sarampo estão de volta. A Ciência não deveria ser ter a solução para toda espécie de males? E o que dizer da comunicação na era digital? É só olhar na hora do rush dentro dos trens e dos metrôs e principalmente em suas escadas: zumbis abstraídos com seus smartphones. Houve um recrudescimento da comunicação. As pessoas estão perdendo a sociabilidade, principalmente dentro dos lares. Ninguém tem mais paciência para conversar com ninguém. No meio cristão, é uma dificuldade reunir a família para orar na hora do almoço. Cada um está recolhido em seu espaço manuseando o seu celular. Não sabemos ainda aonde isso vai dar. Estamos cheios de problemas e comendo mal, perdoe-me a indiscrição: comendo porcaria. Uma quantidade enorme de substâncias químicas na carne, nos vegetais, na água, nos produtos enlatados. Nunca tivemos tanta alergia. E as bulas de remédios, cada vez maiores. Na verdade, grande parte das descobertas científicas está sendo aplicada na produção de bens de uso e consumo humano. Faturamento. A sociedade esperava mais.

Quanto à imprensa, jornal, rádio e TV, é 99% tendenciosa. Mostra a informação sob o ângulo que lhe convém. Muitos jornalistas falam aquilo que a audiência quer ouvir e escamoteiam a verdade. A transparência completa  é algo que ainda precisa ser incorporado ao processo de informação dos fatos à sociedade brasileira na era das páginas eletrônicas.  Gilberto Mendonça Teles (2010), registrou um fato interessante ao notar que os dicionários nem sempre reservaram um verbete especial para o termo transparência [1]. Para defini-lo com a profundidade exigida,  buscou auxílio no Dicionário dos Sinônimos - Poético e de Epítetos da Língua Portuguesa de Roquete & Fonseca (1848). Lá,  encontrou o seguinte:
A água é clara, quando nenhuma substância a turva; é diáfana, quando permite a passagem dos raios de luz, mas só é transparente quando permite a visão completa dos objetos que nela estão contidos.
Diante desses conceitos, não é possível dizer que há transparência em todos os fatos noticiados pela imprensa devido à manipulação.

O Judiciário brasileiro, principalmente o que está instalado nas grandes capitais, é a esfera de poder no Brasil que, segundo a grande imprensa, recebe remuneração, benefícios e aposentadoria acima dos limites impostos pela própria Lei. Transparência e desencanto.

Depois de ter se desencantado com tudo e com todos, chegou a vez da própria pós-modernidade. Sua visão crítica expôs a nudez de todas as áreas. A sociedade, sob está ótica,  passou a observar as mazelas e idiossincrasias de religiosos, cientistas,  políticos, juízes e jornalistas. O resultado disso é um comportamento individualista e consumista. O novo fica velho em menos de um ano. A descartabilidade de tudo.  A pós-modernidade é um pensamento que mostrou o cisco no olho das instituições sociais, sem dar nenhuma referência em troca. As instituições coletivas tiveram suas vidraças quebradas mas o indivíduo está se desgarrando e ficando solitário. Desagregação social.

E o cristão dentro da Igreja, diante de tudo isso, não está imune à fúria do mar e a força contrária do vento. A palavra de Deus ainda é o nosso referencial e a nossa âncora em meio à tempestade.  Entre tantos outros textos, citarei este, um dos meus preferidos: primeira Carta de São João, 2,  assim está escrito:
15 Não ameis o mundo, nem o que no mundo há. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele. 
16 Porque tudo o que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não é do Pai, mas do mundo. 
17 E o mundo passa, e a sua concupiscência; mas aquele que faz a vontade de Deus permanece para sempre.
18 Filhinhos, é já a última hora; e, como ouvistes que vem o anticristo, também agora muitos se têm feito anticristos, por onde conhecemos que é já a última hora.
19 Saíram de nós, mas não eram de nós; porque, se fossem de nós, ficariam conosco; mas isto é para que se manifestasse que não são todos de nós.
20 E vós tendes a unção do Santo, e sabeis tudo.
21 Não vos escrevi porque não soubésseis a verdade, mas porque a sabeis, e porque nenhuma mentira vem da verdade.

 O mundo passa, mas a Palavra de Deus permanece. Em meio às tempestades de quaisquer eras eu continuo ancorado nestes belos versos do Salmo 46:
DEUS é o nosso refúgio e fortaleza, socorro bem presente na angústia.  Portanto não temeremos, ainda que a terra se mude, e ainda que os montes se transportem para o meio dos mares. Ainda que as águas rujam e se perturbem, ainda que os montes se abalem pela sua braveza. Há um rio cujas correntes alegram a cidade de Deus, o santuário das moradas do Altíssimo. Deus está no meio dela; não se abalará.

SP 03/1/18.







quinta-feira, outubro 16, 2014

A resposta pentecostal à condição pós-moderna

Postado originalmente no blog Teologia Pentecostal

Que a chamada pós-modernidade seja, na maioria de seus aspectos, uma radicalização das crenças e costumes modernos, boa parte dos analistas culturais tem sido propensa a concordar. Mas há, sim, e em decorrência mesmo dessa radicalização, rupturas significativas entre a autoimagem sustentada pelo homem moderno e a imagem que o homem pós- ou hiper-moderno forma de si. Grosso modo, talvez possamos traçar que na modernidade o homem se enxergava como um observador científico, habilitado a detectar objetivamente as deficiências do mundo e propor invenções que as solucionariam. Já o homem hiper-moderno carrega consigo uma melancolia pelos morticínios do século XX e uma descrença no poder esclarecedor da ciência.

Se, por um lado, a Igreja deve cuidar para que a desilusão hiper-moderna não desague num antirracionalismo pagão (daí o clamor do papa João Paulo II, na encíclica Fides et ratio, de 1998, por que a Revelação seja anunciada como o "ponto de enlace e confronto" entre a filosofia e a fé, a esperança de que o ser humano possa conhecer a Verdade), por outro lado, me parece que tal disposição de espírito está sendo resultada pelo próprio ceticismo moderno, que carrega em si a semente de sua superação. É como na máxima de Chesterton: "Para responder ao cético arrogante, não adianta insistir que deixe de duvidar. É melhor estimulá-lo a continuar a duvidar, para duvidar um pouco mais, para duvidar cada dia mais das coisas novas e loucas do universo, até que, enfim, por alguma estranha iluminação, ele venha a duvidar de si próprio". O século XX propiciou-nos muitas estranhas iluminações, trazendo-nos a este estágio em que começamos a duvidar de nós mesmos.

Mas a descrença em si não pode ser o estágio definitivo. Como demonstra o psicólogo judeu, aluno de Freud, Viktor Frankl, com sua Logoterapia (em grande parte desenvolvida durante sua passagem num campo de concentração), o homem está sempre em busca de sentido. E, se há algo que, de um modo geral, confere sentido à vida do homem hiper-moderno, isto é a narrativa. Queremos sempre nos ver envolvidos numa história que nos transcenda. Já que a verdade última não está nem no objeto externo analisado friamente, nem no eu pensante solitário, buscamo-la na relação. Prezamos pela interação (ainda que virtual), o cinema e a teledramaturgia são as formas de arte que mais conquistam admiradores, utilizamos as redes sociais da internet para exibir ao mundo a nossa própria narrativa, personalizada como a bem queremos.

Neste cenário, o materialismo, que fora até então o grande inimigo da fé, vai perdendo sua força. Ao analisar objetos brutos isolados para explicar seu funcionamento, ele abstrai da condição humana seu caráter temporal, histórico, dramático. Exige das doutrinas religiosas um naturalismo que nem o próprio mundo nos autoriza a sustentar. Torna-se evidente que as religiões podem e devem oferecer respostas absurdas porque a própria condição humana é absurda. Para os padrões de quem de repente se vê lançado num mundo, caminhando entre seres semelhantes, relacionando-se com eles, participando de uma história, construindo uma narrativa, ser criado e redimido por um Deus todo-poderoso é totalmente coerente. Não pode dogmaticamente chamar mito a tal narrativa cósmica quem irremediavelmente vive no sonho da existência e da ação. A vida é um caminho sem volta que, se pode ser desfrutado em vão de algum modo, certamente não o será por quem concebê-la na plenitude de sua absurdidade.

A teologia pentecostal pode emergir, neste contexto, como uma abordagem cristã particularmente atraente, por dois motivos.

Em primeiro lugar, o pentecostalismo sadio tende a ressaltar a importância da comunidade. Em Atos 1, Cristo pede que os discípulos estejam reunidos até que o Espírito desça sobre eles e, em Atos 2, Lucas realça o impacto coletivo daquele batismo. Em 1 Coríntios 12-14, Paulo esclarece que a finalidade última dos dons espirituais é a edificação da igreja. A experiência pentecostal se dá, portanto, em comunidade, e, na medida em que o teólogo pentecostal é aquele que desenvolve a doutrina do Espírito a partir da atualidade de uma experiência palpável, ele pensará e fará seu anúncio a partir de uma vivência comunitária concreta. Mais do que isso: a comunhão e o carisma que devem ser evidentes numa igreja pentecostal serão, se biblicamente orientados, um reflexo - ainda que defeituoso - da pericorese trinitária, isto é, da dança, da harmonia perfeita e bela que há na Trindade Santa. A experiência pentecostal numa igreja insere seus membros numa relação de profunda intimidade, faze-os reconhecer a si próprios como participantes de uma mesma narrativa.

Em segundo lugar, a experiência da manifestação dos dons espirituais leva cada crente individualmente a se perceber em comunhão com o Deus triúno que, mais do que personagem de uma história, é a condição de possibilidade para qualquer narrativa. A experiência pentecostal, ao mesmo tempo em que cumpre uma promessa proferida por Cristo e repete um padrão estabelecido pela Escritura, é sempre atual e única. Assim, ela ratifica a verdade da Revelação cristã (Paulo estabeleceu o dom de línguas como um sinal para os descrentes) numa relação interpessoal, a partir dum batismo naquEle que Cristo, que se declarou a Verdade, predisse que viria para testificar Sua pregação. O testemunho do Espírito remeterá o cristão à verdade das Escrituras e do Logos divino, sendo o ponto de enlace entre a narrativa e a Revelação eterna, o ponto de encontro com aquEle que criou o Universo, determinou seu funcionamento e hoje nos dá a ciência para perscrutá-lo.

O revestimento do Espírito capacita a Igreja, desde a Era Apostólica, a testemunhar o evangelho de Cristo ao mundo com poder e autoridade. A marca de uma teologia e de uma igreja pentecostais, destarte, deve ser a de quem não desacreditou totalmente da capacidade de conhecimento por parte do homem, mas se relaciona pessoalmente com aquilo que confere razoabilidade ao mundo: o Deus triúno.


Essas são considerações introdutórias sobre um assunto amplo e instigante. Multiplicam-se os livros e teses acadêmicas que o têm por objeto. Espero voltar a ele em breve numa resenha de "Thinking in Tongues: Pentecostal Contributions to Christian Philosophy" ("Pensando em Línguas: Contribuições Pentecostais para a Filosofia Cristã", em tradução livre), de James K. A. Smith (livro de 2010). Que me consta, esse debate ainda não encontrou solo no Brasil. É desejoso que encontre. Que este texto sirva de incentivo a que os cristãos de confissão pentecostal se prontifiquem ao labor teológico-filosófico e a que os crentes de outras confissões considerem o que estes irmãos, a partir de sua experiência comunitária e de sua rica tradição teológica, têm a acrescentar ao pensamento cristão.