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domingo, março 29, 2015

Repensando o louvor evangélico

Publicado originalmente no blog Teologia Pentecostal

Caminha já para se tornar novamente senso comum, or graça divina, que os cânticos litúrgicos, para fazerem jus ao título, devem constituir louvores a Deus, e não mensagens motivacionais. Ponto absolutamente essencial. Entretanto, isso não é tudo. A verticalidade do louvor cristão não é arbitrária, meramente convencional ou fruto da observação legalista dum código de etiqueta espiritual. A comunidade cristã reunida louva a Deus porque não consegue se imaginar fazendo outra coisa, porque não concebe outro merecedor de atenção que não Deus e porque não sabe – nem poderia saber – como se dirigir a Deus senão louvando-O. Tendo esse fundamento em mente, poderemos repensar algumas formas contemporâneas de louvor que, ainda que verticais e bem intencionadas, não refletem até o fim o espírito do louvor cristão.
O fato é que a prática do louvor – mais ainda, do louvor comunitário – tornou-se escandalosa para o mundo moderno. Toca as raias da blasfêmia, desde um ponto de vista secular, despender atenção, pronunciar elogios, elevar ofertas que não nos tenham, em última ou primeira instância, como objeto ou parte dele. As histórias românticas, forma literária moderna por excelência, dão prova desse dogmatismo. Nelas, o amor e o ódio são sempre puros, emanados direta e completamente do sujeito, que tem o poder mágico de gerá-los (“poder mágico”: às vezes, o sentimento é gerado da flecha atirada por um cupido, sim; mas, de um lado, é preciso apelar a um ser extramundano, caricatural, irreal, que no fundo é um alter ego hiperbólico do próprio sujeito, para preservar a espontaneidade do desejo, e, de outro lado, mesmo o cupido está fadado a respeitar a autonomia do sujeito, submetendo-se ao trabalho meticuloso de mirar o seu coração); uma obra de arte é tanto mais bela quanto mais “inspirado” estava seu autor ao criá-la; o amor é tanto mais legítimo quanto mais rapidamente se manifesta, sendo o “amor à primeira vista” a expressão máxima desse sentimento.[1]
Ora, não portarão resquícios desse egocentrismo aquelas canções evangélicas que, conquanto dirijam-se a Deus, o fazem partindo dos próprios sentimentos? Versos que narram o que se passa “no meu coração” quando penso em Deus e as minhas reações ao concentrar-me nEle, que descrevem – ou fingem descrever – o meu estado de espírito no momento do louvor, não serão maneiras de louvar a Deus sem deixar de louvar lateralmente também a mim mesmo, sem deixar de levar em conta o meu pretenso mérito em me dispor a adorá-Lo? Não serão maneiras de afirmar a crença em Deus sem renunciar à crença na minha autonomia, no meu poder mágico de gerar sentimentos, na minha virtude de desejar a Deus? Parece que sim, e ocorre que estas são crenças pagãs, pré-cristãs, de quem ainda não passou pela conversão epistemológica primordial, que é o entendimento epifânico de que não sabemos do que precisamos, de que não somos capazes de cumprir a finalidade de nossa existência e que até para adorar a Deus dependemos dEle.
Num primeiro momento, nossa postura diante de Deus, seres caídos que somos, não é de amor, mas de medo, vergonha e, portanto, aversão. Nós só podemos e só queremos amá-Lo porque Ele nos amou primeiro. Não há nada semelhante a uma inspiração interior que nos leve a adorá-Lo. Nosso único talento natural é para o pecado. Esse é o desencantamento primeiro, cuja negação coincide com o misticismo, e cujo reconhecimento fará com que o nosso louvor afaste-se inteiramente de nós mesmos e dirija-se a Deus como o Criador.
Mas há um segundo desvio importuno em que mesmo louvores verticais e bem-intencionados podem incidir. Ele talvez constitua um último e moribundo suspiro do egocentrismo, da tentação de se fazer sorrateiramente objeto do louvor. Ao passo que o primeiro desvio consiste em utilizar o louvor para descrever o que ocorre dentro de si – e assim, em última análise, louvar também a si mesmo –, o segundo consiste em fazer do louvor uma pretensiosa descrição sistemática da natureza e da operação divinas, transformando-o num manifesto teológico – que, assim, enaltece o próprio conhecimento portado pelo indivíduo.
Mesmo aquele que passou pela conversão primeira, que se deu conta da própria contingência e reconheceu em Deus a origem de tudo, pode carecer ainda de empreender o passo último da conversão, a saber, reconhecer em Deus o fim de tudo. Canções que se comprometem com posições teológicas secundárias e por demais controversas, que condicionam o louvor a Deus à veracidade da experiência particular do batismo no Espírito Santo (como é comum entre pentecostais), à veracidade da eleição incondicional (como é comum entre calvinistas) ou à veracidade do criacionismo de terra jovem (como é comum entre fundamentalistas), são certamente dispensáveis. Mencionar tais crenças por meio de canções, em contextos restritos, é certamente legítimo, mas, no culto público, transformar os objetos dessas crenças em objetos do louvor, louvar a Deus porque Ele proporciona a experiência particular do batismo no Espírito Santo (assim se crê), porque Ele elegeu incondicionalmente aqueles que haveriam de ser salvos (assim se crê) ou porque há seis mil anos Ele criou a Terra e o que nela existe, tais como os conhecemos hoje, em seis dias (assim se crê) é, no fundo, louvar o próprio conhecimento, louvar o privilégio de conhecer esses mistérios. Certamente não é esse o louvor de que “tudo o que tem fôlego” é capaz e a que “todos os povos e línguas” são impelidos.
Não é a nossa confissão de fé, o nosso corpus doutrinário, que deve ser louvado, muito menos o fato de podemos assimilá-los. A revelação de Deus como o fim de tudo é levada a cabo em Jesus Cristo. Ele, portanto, deve ser, direta ou indiretamente (mas, de preferência, diretamente), o único objeto de adoração. Cristo é fonte inesgotável de enaltecimento. Se a contemplação de Deus como o Criador confere ao louvor certo distanciamento, certo temor – que extirpa o autoelogio –, é a contemplação de Deus como o Redentor[2] – e não a afirmação arrogante do conhecimento teológico – que nos permitirá a entrega, o desarme, o derramamento.
A contemplação de Deus como o Criador leva a um louvor primordialmente instrumental. A contemplação de Deus em Cristo como o Redentor é que nos permite um louvor com cânticos, um louvor interativo – é no ato sacrificial de Cristo que o véu do Templo se rasga. A adoração cristã genuína será uma síntese dessas duas atitudes: contemplando a Deus como o Criador inescrutável ao mesmo tempo em que tocando-O como o Redentor encarnado. Mais do que rechaçar as canções que só falam de bênçãos e vitórias, é preciso atentar para esse duplo fundamento da adoração. Como em todos os aspectos da vida cristã, é o cristocentrismo mais radical que poderá resolver a prática comunitária do louvor.



[1] Ver GIRARD, René. Mentira Romântica e Verdade Romanesca. São Paulo: É Realizações Editora, 2009.
[2] Ver RATZINGER, Joseph. Introdução ao Espírito da Liturgia. São Paulo: Edições Loyola, 2013.