Caminha já para se tornar novamente senso comum, or graça
divina, que os cânticos litúrgicos, para fazerem jus ao título, devem
constituir louvores a Deus, e não mensagens motivacionais. Ponto absolutamente essencial.
Entretanto, isso não é tudo. A verticalidade do louvor cristão não é
arbitrária, meramente convencional ou fruto da observação legalista dum código
de etiqueta espiritual. A comunidade cristã reunida louva a Deus porque não consegue se imaginar fazendo outra coisa,
porque não concebe outro merecedor de atenção que não Deus e porque não sabe –
nem poderia saber – como se dirigir a Deus senão louvando-O. Tendo esse
fundamento em mente, poderemos repensar algumas formas contemporâneas de louvor
que, ainda que verticais e bem intencionadas, não refletem até o fim o espírito
do louvor cristão.
O fato é que a prática do louvor – mais ainda, do louvor
comunitário – tornou-se escandalosa para o mundo moderno. Toca as raias da
blasfêmia, desde um ponto de vista secular, despender atenção, pronunciar
elogios, elevar ofertas que não nos tenham, em última ou primeira instância, como
objeto ou parte dele. As histórias românticas, forma literária moderna por
excelência, dão prova desse dogmatismo. Nelas, o amor e o ódio são sempre
puros, emanados direta e completamente do sujeito, que tem o poder mágico de
gerá-los (“poder mágico”: às vezes, o sentimento é gerado da flecha atirada por
um cupido, sim; mas, de um lado, é preciso apelar a um ser extramundano,
caricatural,
irreal, que no fundo é
um
alter ego hiperbólico do próprio
sujeito,
para preservar a
espontaneidade do desejo, e, de outro lado, mesmo o cupido está fadado a
respeitar a autonomia do sujeito, submetendo-se ao trabalho meticuloso de mirar
o seu coração); uma obra de arte é tanto mais bela quanto mais “inspirado”
estava seu autor ao criá-la; o amor é tanto mais legítimo quanto mais
rapidamente se manifesta, sendo o “amor à primeira vista” a expressão máxima
desse sentimento.
Ora, não portarão resquícios desse egocentrismo aquelas
canções evangélicas que, conquanto dirijam-se a Deus, o fazem partindo dos
próprios sentimentos? Versos que narram o que se passa “no meu coração” quando
penso em Deus e as minhas reações ao concentrar-me nEle, que descrevem – ou fingem
descrever – o meu estado de espírito no momento do louvor, não serão maneiras
de louvar a Deus sem deixar de louvar lateralmente também a mim mesmo, sem
deixar de levar em conta o meu pretenso mérito em me dispor a adorá-Lo? Não
serão maneiras de afirmar a crença em Deus sem renunciar à crença na minha
autonomia, no meu poder mágico de gerar sentimentos, na minha virtude de
desejar a Deus? Parece que sim, e ocorre que estas são crenças pagãs,
pré-cristãs, de quem ainda não passou pela conversão epistemológica primordial,
que é o entendimento epifânico de que não
sabemos do que precisamos, de que não
somos capazes de cumprir a finalidade de nossa existência e que até para
adorar a Deus dependemos dEle.
Num primeiro momento, nossa postura diante de Deus, seres
caídos que somos, não é de amor, mas de medo, vergonha e, portanto, aversão.
Nós só podemos e só queremos amá-Lo porque Ele nos amou primeiro. Não há nada
semelhante a uma inspiração interior que nos leve a adorá-Lo. Nosso único
talento natural é para o pecado. Esse é o desencantamento primeiro, cuja
negação coincide com o misticismo, e cujo reconhecimento fará com que o nosso
louvor afaste-se inteiramente de nós mesmos e dirija-se a Deus como o Criador.
Mas há um segundo desvio importuno em que mesmo louvores
verticais e bem-intencionados podem incidir. Ele talvez constitua um último e
moribundo suspiro do egocentrismo, da tentação de se fazer sorrateiramente objeto
do louvor. Ao passo que o primeiro desvio consiste em utilizar o louvor para
descrever o que ocorre dentro de si – e assim, em última análise, louvar também
a si mesmo –, o segundo consiste em fazer do louvor uma pretensiosa descrição
sistemática da natureza e da operação divinas, transformando-o num manifesto
teológico – que, assim, enaltece o próprio conhecimento portado pelo indivíduo.
Mesmo aquele que passou pela conversão primeira, que se deu
conta da própria contingência e reconheceu em Deus a origem de tudo, pode
carecer ainda de empreender o passo último da conversão, a saber, reconhecer em
Deus o fim de tudo. Canções que se
comprometem com posições teológicas secundárias e por demais controversas, que
condicionam o louvor a Deus à veracidade da experiência particular do batismo
no Espírito Santo (como é comum entre pentecostais), à veracidade da eleição
incondicional (como é comum entre calvinistas) ou à veracidade do criacionismo
de terra jovem (como é comum entre fundamentalistas), são certamente
dispensáveis. Mencionar tais crenças por meio de canções, em contextos
restritos, é certamente legítimo, mas, no culto público, transformar os objetos
dessas crenças em objetos do louvor, louvar a Deus porque Ele proporciona a experiência particular do batismo no
Espírito Santo (assim se crê), porque Ele
elegeu incondicionalmente aqueles que haveriam de ser salvos (assim se crê) ou porque há seis mil anos Ele criou a
Terra e o que nela existe, tais como os conhecemos hoje, em seis dias (assim se
crê) é, no fundo, louvar o próprio conhecimento, louvar o privilégio de
conhecer esses mistérios. Certamente não é esse o louvor de que “tudo o que tem
fôlego” é capaz e a que “todos os povos e línguas” são impelidos.
Não é a nossa confissão de fé, o nosso
corpus doutrinário, que deve ser louvado, muito menos o fato de
podemos assimilá-los. A revelação de Deus como o
fim de tudo é levada a cabo em Jesus Cristo. Ele, portanto, deve
ser, direta ou indiretamente (mas, de preferência, diretamente), o
único objeto de adoração. Cristo é fonte
inesgotável de enaltecimento. Se a contemplação de Deus como o Criador confere
ao louvor certo distanciamento, certo temor – que extirpa o autoelogio –, é a
contemplação de Deus como
o Redentor – e não a afirmação arrogante do conhecimento teológico – que nos
permitirá a entrega, o desarme, o derramamento.
A contemplação de Deus como o Criador leva a um louvor
primordialmente instrumental. A contemplação de Deus em Cristo como o Redentor
é que nos permite um louvor com cânticos, um louvor interativo – é no ato
sacrificial de Cristo que o véu do Templo se rasga. A adoração cristã genuína será
uma síntese dessas duas atitudes: contemplando a Deus como o Criador
inescrutável ao mesmo tempo em que tocando-O como o Redentor encarnado. Mais do
que rechaçar as canções que só falam de bênçãos e vitórias, é preciso atentar
para esse duplo fundamento da adoração. Como em todos os aspectos da vida
cristã, é o cristocentrismo mais radical que poderá resolver a prática comunitária
do louvor.