Por André Quirino
Postado originalmente no blog Teologia Pentecostal
Tomo
emprestada parte do título da obra de C. S. Lewis Peso de Glória porque ele mesmo já a emprestara de Paulo, o
apóstolo: “a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós eterno peso de
glória, acima de toda comparação” (2 Co 4.17). A princípio, esse texto parece trazer
em si um termo incompreensível: “peso de glória”, que viria a ser isso? “Peso”
se refere a coisas materiais, com extensão, que se pode mensurar; “glória”
traz-nos à mente brilhos ofuscantes, lampejos etéreos, emanações espirituais.
“Peso de glória”, numa primeira audição, soa tão incompreensível quanto “metros
de saudade” ou “graus de madeira”.
Peso
de glória é um convite ao conhecimento. Por seu caráter paradoxal, o termo se
nos impõe, como um peso. A tribulação que enfrentamos na terra é leve – pesada
é a glória que ela produz no céu. O termo aponta, de um lado, para a unidade da
criação de Deus: o que se faz na terra tem efeito no céu – assim não fosse,
Jesus não poderia ter legado à Igreja chaves para ligar e desligar coisas na
terra e no céu. De outro lado, tal unidade não é do tipo panteísta, que
equipara ontologicamente tudo o que existe: o termo não nega a contradição
entre o que pesa e o que resplandece, mas a radicaliza – é surpreendente que
haja um peso de glória, que a glória pese. E noto ainda uma terceira intuição
subjacente ao termo “peso de glória”: dá-se, entre os elementos opostos, uma
primazia de significado à glória – é ela que pesa, o que pesa é a glória:
tribulações são leves – e uma primazia de sensação ao peso – a glória
sobressai-se à tribulação porque pesa. O peso não é a glória, a glória não é o
peso, mas a glória pesa, pode-se sentir a glória – e, perante ela, as tribulações
são leves.
A
noção cristã de céu, portanto, não é como a arcaica, que projeta brutamente
para um além as benesses tidas como ideais, e que para a maioria das pessoas
são intangíveis, nesta vida – sombra, água fresca e mulheres bonitas ad infinitum. Também não é como a
espiritualista, que imagina a eternidade como uma vadeação errante de espíritos
desincorporados, que eventualmente podem se alegrar ou sofrer como recompensa
ou castigo de atos outrora cometidos em corpo. Há uma continuidade, e constantes
intercâmbios, entre esta vida e a que há de vir. O céu não é só de peso, como
também não é só de glória: é de um peso de glória.
Mas,
assim como a esperança cristã contempla o peso e contempla a glória, o
evangelho fala de céu e fala de inferno. E, se quisermos pregar fielmente todo
o conselho de Deus, deveremos saber comunicar ao mundo a eminência do juízo sem
fazer depender essa anunciação de imaginações arcaicas. Caso contrário,
continuará a parecer atraente ao mundo moderno a escatologia isenta de inferno
– e, por conseguinte, isenta de juízo – dos universalistas e outros liberais.
Entendo
que as menções bíblicas ao inferno apontam para a existência de um peso de condenação. Não se trata de um
termo haurido ipsis litteris da
Escritura, e nem poderia ser o caso: falta-lhe beleza. Seu paradoxo é de outro
tipo. Permanece aqui uma tensão entre o que pesa e o que é declarado, mas o
conteúdo do que é declarado já remete mesmo a alguma espécie de peso. Todos já
experimentaram, após uma falha, a sensação de “consciência pesada”. É intuitivo
associar a declaração de uma sentença com o bater, o cair, o cair pesado do
martelo de um juiz. Essa queda ganha um apelo dramático quando o juízo final é
de que o réu é culpado. O remorso de alguém que errou costuma externar-se com a
decadência do semblante, a precipitação da lágrima, o curvar do corpo – no
limite, o cair ao chão sob o peso da culpa. “Peso de condenação” é um termo
ordinário porque pouco paradoxal. Sequer instiga a investigação do que é que tem
a primazia de significado, do que é que tem a primazia de sensação. Instiga
apenas a vontade de escapar, de estar-lhe longe. Todos sabemos de algum modo o
que é um peso de condenação, e por isso mesmo não o queremos conhecer.
O
profeta Daniel foi impelido por Deus a dizer ao rei Belsazar: “Pesado foste na
balança e foste achado em falta” (Dn 5.27). Na Bíblia, com efeito, juízos
pesam. Ezequiel, o profeta-místico, repete incansavelmente expressões peculiares
para denotar o juízo de Deus sobre Israel: “porei sobre ti os teus caminhos”
(Ez 7.4), “porei sobre ti todas as tuas abominações” (v. 8), “conforme os teus
caminhos, assim carregarei sobre ti” (v. 9), “eu farei recair o teu caminho sobre a tua cabeça” (16.43). O
caminho trilhado por Israel será lançado, como uma pedra, sobre sua cabeça e,
porque pesa, o ferirá. Israel conhecia seu próprio caminho, cada hebreu sabia o
que tinha feito; a última coisa que eles desejavam era que lhes fossem lançados
os seus caminhos, era sentir o peso dos seus atos.
Todo
pecado é uma tentativa de fuga. Pecamos quando queremos desaparecer, quando
queremos simplesmente não ser alvos de juízos morais, quando queremos abstrair
de nossos atos seus significados, seu peso. O pecado é uma revolta contra o
fato incontornável e irremediável da vida, contra o fato de ela ser definitiva.
É uma blasfêmia contra a criação de Deus, contra o ato por que Deus despendeu
de Si mesmo, despendeu de Seu amor. Daí a síntese paulina: “tudo o que não é de
fé é pecado” (Rm 14.23). É pecado tudo que se faz sem a convicção de que foi
Deus quem o proporcionou e de que é para Deus que se deve desfrutá-lo.
O
pecador quer criar um mundo paralelo para si, um mundo em que vigem os seus
valores, e os seus valores são: o que é feito aqui acaba-se aqui. Nesse mundo,
é proibido firmar compromissos. De um ponto de vista cristão, a condição para o
perdão é o arrependimento. Arrependimento, por sua vez, é dar meia-volta, é
reafirmar a centralidade de Deus e a positividade da existência, é recolocar-se
no mundo que Deus criou. A falta de arrependimento, a reafirmação do mundo
próprio, a renegação da criação de Deus, eis o caminho para o inferno. Trata-se
de algo muito mais assustador do que um lago de fogo e enxofre literal, com
demônios a constantemente espetar os sofredores: trata-se de choro e ranger de
dentes causados pela autoafirmação incessante, pela repetição infinita.
O
inferno, nas palavras de Jesus, é onde o verme não morre e o fogo não se apaga
(Mc 9.48). Essa noção, ligeiramente distinta da que consta do Antigo
Testamento, é implicada desta logicamente. Para os hebreus, o seol, o Seio de Abraão, o mundo dos
mortos, e somente ele, é onde não se pode louvar a Deus (Sl 88.11), onde não há
obra, nem indústria, nem ciência, nem sabedoria alguma (Ec 9.10). Deus não se
lembra de quem está lá (Sl 88.5). Para muitos modernos, este seria o próprio
paraíso. Para o salmista, porém, é motivo de lamentação sincera e ensejo para
outra esperança: “não deixarás a minha alma na morte, nem permitirás que o teu
Santo veja corrupção” (Sl 16.10). Jó também proclama: “eu sei que o meu
Redentor vive e por fim se levantará sobre a terra” (Jó 19.25). A Igreja
primitiva vê na ressurreição de Jesus a realização dessa esperança, como se
depreende do discurso de Pedro no dia de Pentecostes (At 2.14–36). Cristo, com
Sua ressurreição, desceu ao hades e
de lá levou cativo o cativeiro (Ef 4.8–10): há uma esperança pós-morte para os
justos. E para os injustos, o que esperar?
Reservada-lhes
está a fome do pecado levada às suas últimas consequências. Como em Provérbios
27.20: “O inferno e a perdição nunca se fartam, e os olhos do homem nunca se
satisfazem”. A mera ideia de uma autoafirmação infinita é desesperadora. E tal
repetição é a demonstração de que toda autoafirmação enquanto fuga, mesmo a que
se pretende passageira, é um terrível engano. Na perspectiva da eternidade,
qualquer fuga é enganosa. E, nas palavras novamente de Jó (26.6), o inferno
está nu perante Deus. A quem está nu, qualquer toque, mesmo o da mais leve
brisa, é forte e pesado. Em oposição ao peso de glória que revestirá os
habitantes do céu, o peso de condenação que afligirá os habitantes do inferno
será indelicado, será insuportável.
Como aprendemos com Lewis, estará no inferno quem ouvir
de Deus: “a tua vontade seja feita”. Esta será a última das sentenças, o peso
de condenação. Vivemos, portanto, a guardar pesos – de glória ou de condenação.
A vida aponta para eles. Uma história humana se define em virtude da atenção
que o indivíduo dispensa às imagens da eternidade, em virtude da aceitação ou
não de seu significado. O cristão está imerso no paradoxo de sentir o peso da
existência ao mesmo tempo em que sabe que, perante o peso eterno, ele é leve. E
sua atitude para com cada perdido deve ser a de quem está disposto a mover o
mundo inteiro com o intento de que ele se salve. Pois foi esse o ato de Deus em
Cristo, o ato pesado da morte e ressurreição. Na cruz, encontram-se o homem e
Deus, o peso e a glória. O inferno é trivial: é a negação de Deus. É de tão
ordinário que ele se torna insuportável. O inferno é o inferno porque é a
abolição do paradoxo.