Publicado originalmente no blog Teologia Pentecostal
Basta
que eclodam casos sanguinolentos de extremismo religioso para que os
cruzadistas antirreligião denunciem o caráter supostamente homicida da fé. Há
quem diga que nela está a causa de toda a intolerância que há no mundo. Que as
instituições religiosas apontem geralmente para a vocação humana à violência,
não se pode negar. A mais antiga delas é o sacrifício, um ato de violência
adotado universalmente como meio de se neutralizar a própria violência pulverizada
na comunidade. A se desdobrar de instituição tão grave, entranhavelmente
implicada das paixões mais instintivas ao ser humano, a religião tem mesmo
muito a dizer sobre a violência. Sendo o sacrifício um disfarce para a culpa
pessoal, a religião pode, de um lado, engendrar a terceirização da responsabilidade,
a caça a inimigos externos que precisem ser exterminados – este é o caso de
certa interpretação jihádica do islamismo –, ou, de outro lado, estimular a
admissão da culpa, revelar que a violência está em nós – e este é o escândalo característico
do cristianismo.
É
porque a mensagem cristã traçou o contorno disso a que chamamos civilização
ocidental que a nossa sensibilidade não pode admitir algo como uma jihad. Se o que digo é verdadeiro, então
os cruzadistas antirreligião erram ao associar inexoravelmente fé e violência. A
religião, por sua abrangência, tem obviamente algo a dizer sobre a violência,
mas tal mensagem pode ser exatamente a de subordiná-la a um princípio de
tolerância – o que foi a cirurgia operada pela pregação cristã (negá-lo não
passaria de falsa modéstia) –, e por isso imputar-lhe a culpa pelas tragédias é
uma atitude duplamente contraditória: porque se vinga injustificadamente, em
nome de um ideal abstrato de tolerância, contra aquilo mesmo que nos permite
ser concretamente tolerantes, e porque imita precisamente a atitude da religião
que lida mal com a violência, terceirizando a culpa.
Tudo
isso está solidamente corroborado pela história. Aqui, para demonstrar a
clareza do cristianismo em revelar a vocação humana à violência, quero breve e primeiramente
me aproximar do texto bíblico, especialmente de sua porção que norteia também a
religião judaica e que funda a antropologia de que partem os primeiros
pensadores cristãos – a Bíblia Hebraica –, e em seguida tecer algumas curtas
reflexões filosófico-teológicas que possam ilustrar a cosmovisão ancorada por
esse texto e a tradição fundada por ele.
O
relato de Gênesis expõe sem rodeios: Caim, o primeiro irmão, foi também o
primeiro fratricida, assassinando seu irmão Abel. Desde que o pecado entrou na
criação, somos em princípio rivais uns dos outros, prontos a eliminar
indivíduos que constituam obstáculos à realização de nossos desejos. Nesse
sentido, a pergunta feita por Caim a Deus quando questionado sobre o paradeiro
de Abel é precisa: “Acaso sou eu guardião de meu irmão?”.
Temos
naturalmente a crença firme em que realizar as nossas ambições individuais é a
mais urgente das tarefas. Se não pedimos para nascer, tampouco – ou muito menos
– pedimos para ter semelhantes, próximos, irmãos. Por acaso tenho alguma
responsabilidade sobre meu vizinho? Por acaso devo zelar por uma casualidade,
me preocupar com uma contingência?
Se
a dúvida de Caim nos alcança, é porque em algum sentido ele venceu. Não é
difícil perceber que sentido é esse: Abel não deixou herdeiros; descendemos de
Caim, ele é quem tem posteridade. Ainda que reduzíssemos o quadro idealmente
até o estágio em que só há um homem, as perspectivas não seriam melhores:
havendo apenas Adão, ele peca e seu triunfo é perpetuar o pecado, transmiti-lo
à sua prole, que coincide com toda a humanidade. Assim chegamos à doutrina do
pecado original por um caminho retroativo.
O
pessimismo cínico, à la Brás Cubas,
concluiria disso que gerar descendência é contagiar outrem com uma indizível
miséria, que, portanto, a existência não faz sentido, viver é uma catástrofe e
– à la Camus – o suicídio é o ato
humano supremo.
Com
efeito, a doutrina do pecado original e o senso de responsabilidade que ela
pressupõe implicam não apenas que somos todos pecadores antes mesmo que
tenhamos consciência do que é o pecado, mas também que os filhos da
prostituição cultual estão equiparados em impureza a quaisquer outros
recém-nascidos. Perante tão trágico cenário, a pergunta retórica de Caim se
transforma insensivelmente na pergunta retórica dos gnósticos: não será a
criação intrinsecamente má, realização de um deus ruim?
O
gnosticismo, o caimismo e toda heterodoxia iniciam seu processo de apostasia
com uma imprecisão amadora, uma precipitação pueril. A ortodoxia fornece sempre
a resposta que, por ser a mais óbvia, é a mais refinada e ultrajante. É um fato
cheio de significado que a heresia primeva se defina por um mau juízo da
criação, que por sua vez impõe um mau juízo do caráter do Criador. Aquele que
concebeu a provavelmente mais profunda e consistente defesa da ortodoxia já
escrita, G. K. Chesterton, não poderia deixar de enfrentar essa questão.
Numa
passagem (compreensivelmente?) pouco citada de Ortodoxia, o pensador inglês desbrava a questão “obscura e
terrível” que “os maiores santos e pensadores com razão recearam abordar”.
Referindo-se aos eventos de nascimento e morte de Cristo, ele propõe que, para
o cristianismo, surpreendentemente, consta das virtudes do Criador também a
coragem, a qual consiste em passar por um ponto de ruptura sem se partir. O
ponto crucial da História é aquele do Eli,
Eli, lamá sabactâni?, aquele em que “Deus foi abandonado por Deus”.
E agora deixemos que
os revolucionários escolham um credo dentre todos os credos e um deus entre
todos os deuses do mundo [...]. Eles não encontrarão um outro deus que tenha ele
mesmo passado pela revolta. Não (a questão torna-se difícil demais para a fala
humana), mas deixemos que os próprios ateus escolham um deus. Eles encontrarão
apenas uma divindade que chegou a expressar a desolação deles; apenas uma
religião em que Deus por um instante deixou a impressão de ser ateu (Ortodoxia.
São Paulo: Mundo Cristão, 2008, pp. 227-8).
Voltemos à criação antes de nos
atermos à cristologia chestertoniana. Dum
ponto de vista estritamente metafísico, não vejo como se possa declarar a impossibilidade
do mal uma vez consumada a criação: se o mundo é contingente, não pode não
haver o mal. Aproximando-me da linguagem teológica, mas ainda falando do campo
metafísico: ou Deus é tudo o que há, ou há o mal; ou não há nada além de Deus,
ou há o mal. Isto é o princípio da criação, numa perspectiva teísta: Deus criar
espaço para haver algo que não Ele.
Por isso a criação do mundo por Deus
não é como a criação de um prédio por um arquiteto. A criação do mundo vem
acompanhada de lágrimas, implica um engajamento pessoal, um envolvimento
afetivo, é um ato de doação. Por isso o retrato pintado por Michelangelo da
criação de Adão dá já à cena uma áurea melancólica, de um afastamento
indesejado que o próprio ato criativo requer. A criação dói.
Mas
então não será a obra de Deus intrinsecamente má, como reivindicam os
gnósticos, não será o ato criativo uma perversidade, como questionou certa vez
com muita sinceridade um colega de faculdade, numa dessas conversas sobre
metafísica? A pergunta já não é metafísica, mas teológica, e deve ser
respondida teologicamente.
Para
Paulo, o mundo foi criado para Cristo
(Cl 1.16). Vale dizer: o mundo é um presente de Deus-Pai para Deus-Filho. Muito
antes que Adão pecasse, a Santíssima Trindade dispusera-se ao sacrifício. O mundo,
portanto, manifesta o poder de Deus, que incide até sobre si mesmo: Deus é
poderoso até sobre Seu próprio poder – por isso é corajoso, e por isso doa,
esvazia-se, encarna-se. A beleza da criação aponta para a beleza da Trindade
que a precede, sustenta e supera. O mundo é um palco para a relação profunda,
verdadeira e eterna de amor que há na Trindade – e essa relação chega até nós!
Semelhantemente
ao Gênesis, a nova criação inaugurada por Cristo, por meio da fé em Seu poder,
funda-se em dor e lágrimas. Um dos sinais visíveis, comunitários e recorrentes
dessa fé, que a renovam – falo dos sacramentos –, é a Ceia: o partilhar do
corpo ferido de Cristo e do cálice de Seu sangue. A Igreja, como Corpo de
Cristo, como comunidade das novas criaturas que descendem do segundo Adão,
compartilha das lágrimas de Deus, exercita-se em sofrimento. Assim, a resposta
ao gnosticismo transforma-se na resposta ao caimismo: sou guardião de meu irmão,
responsável por meu vizinho, porque a razão e o modelo da nossa existência não
é a pura contingência, mas a Trindade, em que jamais faltará amor e que jamais
o negará à Sua criação.
Para
retomar o fio que nos trouxe até aqui: nada será mais eficaz para a
disseminação da tolerância do que a pregação do Cristo crucificado. E se nós,
que nos dignamos chamar cristãos, não o anunciarmos, a mula profetizará, as
pedras clamarão: vocês, descendentes de Caim, crucificaram o único Santo.
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