Por André Quirino
Texto publicado originalmente no blog Teologia Pentecostal.
Eu
confesso: a entrevista de Caio Fábio ao “TheNoite” (SBT),
de Danilo Gentili, me surpreendeu. Surpreendeu-me positivamente, sim, quando o
entrevistado insistiu que o profeta Jonas pode ter sido literalmente engolido
por um grande peixe e que há possessões demoníacas reais. Isso mostra que Caio
não é exatamente um liberal. Surpreendi-me negativamente também, quando ele
contou com naturalidade um caso de abuso sexual que sofrera na infância, como fosse
uma experiência saudável e recomendável. O flerte com o marcionismo (google it) já não me surpreende.
Tampouco o linguajar agressivo – que não é menos contraproducente em personas pretensamente
“intelectualizadas” como Caio Fábio do que em figuras mais vulgares como Silas
Malafaia ou Datena. Ainda que Caio faça críticas certeiras e necessárias à
religiosidade popular evangélica, sua arrogância latente e seu estado de “imponderabilidadequântica” (sic) quase sempre o levam a cometer
gafes pueris. Surpreendi-me negativamente principalmente quando o entrevistado,
que já estudou a fundo Francis Schaeffer e
teve contato com obras de gente como Louis Berkhof, soltou um clichê
imperdoável vindo de um homem de estudos: “o cristianismo”, asseverou ele, “é
uma invenção de Constantino”.
Eu
sei, Caio Fábio não é um “homem de estudos” no sentido “newtoniano” (sic) da palavra, e provavelmente me
responderia que Jesus é a chave hermenêutica dos
estudos. De fato, Jesus é a chave hermenêutica dos estudos, da Bíblia, de mim,
de você. Por isso mesmo, os estudos, a Bíblia e tudo o mais devem ser levados a
sério. Mesmo porque há que se reconhecer que Caio Fábio em algum lugar estudou (bem ou mal) esses equívocos que
dissemina. Ele não os inventou. E hoje jovens revoltados – sem saber muito bem
com o quê – que acreditam na primeira informação que a Wikipedia lhes traz repetem clichês como o supracitado aos
borbotões.
Quem,
no século passado, dizia algo semelhante ao que disse Caio, mas com elaboração
mais refinada, era John Howard Yoder, um anabatista americano, professor na Universidade
de Notre Dame, crítico de Reinhold Niehbur. Outro professor de ética cristão
com convicções pacifistas, antinacionalistas e, por assim dizer, anticlericais,
que recebe grande influência da obra de Yoder, é Stanley Hauerwas,
autodenominado pós-liberal. Ele atua ainda hoje, também em Notre Dame; certa
vez, chamou a sola scriptura de
heresia; defende a teologia narrativa; como intelectual público, fez participações
no programa da Oprah Winfrey. Não, não tenho implicância com teólogos que participam
de talk shows. Reconheço, Hauerwas é
mais profundo que Caio Fábio: também recebe a saudabilíssima influência dos
gigantes Dietrich Bonhoeffer e Alasdair MacIntyre (este, ainda vivo).
Pois
bem. É em resposta a Hauerwas e, principalmente, Yoder (autor de “The Politics of Jesus” [“A Política de Jesus”]) que surge o livro
“Defending Constantine: The Twilight of
an Empire and the Dawn of Christendom” [“Defendendo Constantino: O Crepúsculo de um Império e o Alvorecer da
Cristandade”] (IVP Academic, 2010), de Peter J. Leithart. Os acólitos de
Caio Fábio que queiram se aprofundar nos estudos da História da Igreja fariam
bem em acompanhar o debate que o livro desencadeou. Em tempo: Caio e outras
figuras do meio teológico evangélico gostam de ostentar as acusações e
perseguições que sofreram. Leithart já foi acusado de heresia pelo presbitério
da PCA (Presbyterian Church of America). Foi inocentado. Não tem medo da
polêmica (escreveu há pouco tempo, na First
Things, o excelente artigo “The end of Protestantism” [“O fim do protestantismo”]; talvez o título nos traga à memória um “Deus nos
livre de um Brasil evangélico”, de outro figurão tupiniquim – a diferença é que
o artigo deste último é pouco mais que um esbirro de ideologia política), mas
também não tem medo de estudar e pensar com seriedade ao mesmo tempo em que professa
a fé na una e santa Igreja universal.
Quem
diz que “o cristianismo é uma invenção de Constantino” está querendo dizer uma
de duas coisas: ou que o estabelecimento do núcleo de dogmas e doutrinas que
até hoje é considerado a ortodoxia cristã (é a prática comunitária disso que eu
preferencialmente entendo por cristianismo) foi decisivamente influenciado por
Constantino, que o teria paganizado (parece ser essa a intenção da fala de Caio
Fábio, que também menciona a crença numa deusa romana como componente da
mixórdia que haveria originado esse “cristianismo”); ou que, antes de
Constantino, os cristãos associavam-se e agiam com certa espontaneidade que
lhes autorizava a pensar como Caio Fábio pensa hoje, a saber, que “Igreja sou
eu, é você” (resposta que ele deu a Danilo Gentili, quando este lhe questionou
se o movimento Caminho da Graça não acabaria por se transformar numa igreja
como as outras), e que, após Constantino, essa espontaneidade acabou.
Vejamos
de perto cada uma das duas hipóteses, a partir da contribuição de Peter
Leithart.
Constantino
paganizou a fé em Cristo?
O
livro de Leithart é uma biografia de Constantino, mas é também uma análise da
crítica de Yoder ao que este chamava “constantinianismo”: a tendência teológica
moderna de se achar que os Estados nacionais (ou ao menos um deles) devem
caminhar para uma “cristianização”, a fim de que o Reino de Deus se estabeleça
na Terra. Em termos teológicos: trata-se do reconstrucionismo pós-milenista,
comum em alguns círculos calvinistas. Muitos alegam que Schaeffer tendia a essa
posição. O famoso teólogo arminiano Roger Olson, em sua resenha do livro deLeithart,
pondera que este também pende ao reconstrucionismo – embora o livro ainda seja,
nas palavras de Olson, “altamente recomendável”.
Mas
Leithart não discorda integralmente da crítica de Yoder. Hauerwas diz que “Defending Constantine” é “um
livro importante”, cuja crítica seria “apreciada e levada a sério por Yoder”, e
desabafa: “Como um pacifista, eu não poderia esperar um parceiro de diálogo
melhor que Peter Leithart. Deus é bom”. Podemos dizer com tranquilidade que não
é preciso ser um reconstrucionista para apreciar “Defending Constantine”. Tanto é assim que a resenha de Stanley Hauerwas
é quase integralmente um elogio ao livro, em que, segundo ele, inegavelmente o
autor fez sua “lição de casa” histórica: foi rigoroso nas pesquisas que o levaram
a reconstruir uma figura tão polêmica como a de Constantino. De fato, a tese é
de que a imagem que popularmente se tem do imperador (de um inescrupuloso que
se aproveitou da religião cristã por interesses políticos e, de quebra,
paganizou a Igreja) é por demais simplista, já que Constantino – como, na
verdade, todos nós – foi um ser humano cheio de complexidades.
Podemos
todos partir de um ponto em comum: a relação entre o império romano e os
cristãos a partir de Constantino foi mesmo problemática para nossos padrões
atuais. Mas a primeira pergunta a se fazer, após constatar-se isso, é: os
padrões modernos são válidos para se julgar um procedimento do século quarto? Ou,
mais pontualmente: poderia ter acontecido de modo diferente após a conversão de
Constantino? Parece-me que a resposta é obviamente não. E é nessa direção que
caminha Peter Leithart. Nas palavras de Roubert Joustra, em sua resenha de “Defending Constantine”:
Constantino viu sua religião como um continuum integrado com sua política.
Ele não usou a religião para unificar
seu império, como se fosse algum tipo
de externalidade. A religião e suas funções estavam vinculadas à vida romana pública e privada.
Portanto, a conversão de Constantino também significou mudança política; não
por causa de alguma mistura original, odiosa de teologia e império, mas porque
a Roma do quarto século não conhecia nada diferente.
Aqui
começa a se desnudar a deficiência fundamental da tese de que “o cristianismo é
uma invenção de Constantino”: falta-lhe a consciência histórica, absolutamente
fundamental no processo de maturação intelectual de qualquer indivíduo. A
aliança entre o império romano sob Constantino e a Igreja não foi friamente
conspirada por bispos sedentos de poder e o imperador. Foi uma decorrência
natural da conversão de Constantino.
Sua
conversão foi sincera? O império melhorou em algum aspecto após a
“cristianização”? Leithart argumenta que sim – e “convincentemente”, segundo a
adjetivação de Hauerwas. Ele aponta que, após a visão de Constantino da cruz
com a frase “In hoc signo vinces”
(“Sob este símbolo vencerás”), o helênico se tornou um cristão verdadeiro e,
tendo compreendido que Jesus era o fim do sacrifício, “dessacrificiou” a ordem
política romana. É bom lembrar que, ao contrário do que muitos dizem, não foi o
edito de Milão (do ano 313) que tornou o cristianismo a religião oficial do
império romano, mas o edito de Tessalônica, publicado em 380 por Teodósio. O
primeiro apenas tirou os cristãos da clandestinidade. Mas Leithart não pretende
isentar o governo de Constantino de erros. Pelo contrário: a imagem que ele usa
é de que o império sob Constantino recebeu a Igreja dentro de si e permitiu ser
batizado por ela; tratando-se de um “batismo infantil” (não uma conversão
repentina ou completa), ele foi apenas um começo.
A
avaliação do historiador Eusébio de Cesareia é mais entusiasmada:
Assim, depois que toda a tirania havia
sido finalmente purgada, o império foi com justiça conservado firme e sem rival
a Constantino e seus filhos. Os quais, em primeiro lugar eliminando aquela
inimizade contra Deus mostrada pelos governantes anteriores, sensíveis às
misericórdias a eles conferidas por Deus, também mostraram seu amor pela
religião e por Deus, com devoção e
gratidão a Ele pelas obras e operações que apresentaram à vista do mundo
inteiro. (CESAREIA, Eusébio de. “História Eclesiástica: Os Primeiros Quatro Séculos da Igreja Cristã”.
Rio de Janeiro: CPAD, 1999, p. 403).
Muitos
dizem que o entusiasmo de Eusébio se deve a uma simpatia do historiador à
posição de Constantino na polêmica ariana. Já chegaremos nesse ponto. Por ora,
prefiramos a apreciação comedida de Leithart. Mesmo porque não é preciso gostar
do governo constantiniano para negar que ele tenha paganizado a fé cristã.
Nosso ponto é mais elementar.
O
que permanece agora é a pergunta: a mistura Igreja-império, que para Roma
parecia natural, não foi prejudicial à fé cristã? A Igreja não piorou em algum aspecto após sua
“imperialização”?
No
aspecto administrativo, sim. A Constitutum
Donatio Constantini (Doação de Constantino) é um emblema de que a
dependência da capital do império por parte da Igreja se agravou – ao ponto de,
quando da sua mudança para Constantinopla, ter-se o germe do Grande Cisma do
Oriente. Mas o próprio cisma, e futuramente a Reforma Protestante, são sinais
de que a piora não foi irreversível.
Outras
arbitrariedades, e estas gritantemente banais, que se condena na era
Constantino são a construção da Igreja do Santo Sepulcro onde antes havia o
templo de Afrodite e o estabelecimento da Páscoa no primeiro domingo após a
primeira lua cheia da primavera. Bem, não posso conceber que alguém em sã
consciência considere essas duas instituições definidoras do cristianismo. Elas
são uma construção e uma data contingentes que nos lembram a nós, seres contingentes,
da única coisa necessária: Cristo. Essas instituições só são “necessárias” por
causa do homem, por causa de mim, por causa de Constantino. Não deve haver
espanto, muito menos condenação, em que Constantino influenciasse no
estabelecimento delas.
Lembremo-nos
de que o “continuum integrado” do
qual nos fala Joustra parecia natural também à Igreja. Mais tarde, partes dela,
em momentos e lugares diferentes, perceberiam seus desvãos administrativos.
Mas, no século IV, eu e você não gritaríamos: “Vejam só, Constantino está
criando algo que o Senhor jamais criaria, e isso se chamará cristianismo!” Primeiro
porque, se de fato o cristianismo só tivesse se iniciado com a aliança da
Igreja com o império, nós não perceberíamos o evento já na época em que ele
ocorreu. Ainda não teríamos lido Montesquieu, John Locke e Hobbes, nem Tomás de
Aquino ou Agostinho, o qual contava 17 anos de vida quando Constantino veio a
falecer. Somos, tanto quanto os fatos históricos, contingentes.
E,
em segundo lugar, porque o cristianismo não se iniciou com Constantino. Para
percebê-lo, façamo-nos a pergunta: quanto ao conteúdo da fé, a Igreja piorou
com o governo constantiniano? Ela foi, poder-se-ia insistir, paganizada? Resposta:
de maneira nenhuma. Consultemos o credo resultante do Concílio de Niceia, que
Constantino convocou, e o confrontemos com as crenças pagãs daquela época. Sobre
Cristo, o Credo afirma:
[Cremos] em um Senhor Jesus Cristo, o
unigênito Filho de Deus, gerado pelo Pai antes de todos os séculos, Deus de
Deus, Luz da Luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado não feito, de uma
só substância com o Pai; pelo qual todas as coisas foram feitas; o qual por nós
homens e por nossa salvação, desceu dos céus, foi feito carne pelo Espírito
Santo da Virgem Maria, e foi feito homem; e foi crucificado por nós sob o poder
de Pôncio Pilatos. Ele padeceu e foi sepultado; e no terceiro dia ressuscitou
conforme as Escrituras; e subiu ao céu e assentou-se à direita do Pai, e de
novo há de vir com glória para julgar os vivos e os mortos, e seu reino não
terá fim.
Escreve
Oskar Skarsaune:
Certamente os pais de Niceia não
“helenizaram” a cristologia com seu credo. Já vimos como era ofensiva a simples
ideia do Deus real encarnar-se, e mesmo sofrer, em contexto helênico. Em
Niceia, a igreja confessou que o Filho, um ser único com o Pai, sofrera de
fato. Não havia como abrandar isso recorrendo-se à explicação de que a divina
natureza do Filho era menos divina ou de caráter semidivino. Em Cristo Deus
sofreu. Isso era algo tão repugnante para um helenista como para qualquer outra
pessoa, porém os pais de Niceia entenderam ser essa a doutrina da Escritura. (“À Sombra do Templo: As Influências do
Judaísmo no Cristianismo Primitivo”. São Paulo: Vida, 2004, p. 348).
O
helenismo tendia, isso sim, ao arianismo – i.e., à tese de que Jesus não era
eterno, mas apenas um homem superior. Posição que, aliás – e aqui voltamos ao
tema que, quando citamos Eusébio de Cesareia, ficou suspenso –, contava com a
simpatia de Constantino. Foi ele quem obrigou o bispo de Constantinopla a
readmitir Ário como cristão. Se o cristianismo foi paganizado em Roma, por que,
então, o Credo de Niceia desafia frontalmente o status quo helênico? Se Constantino influenciou na elaboração do
Credo (e não apenas convocou o concílio que o estabeleceu), por que sua opinião
foi rejeitada?
A
associação automática que se faz entre posições ortodoxas e pessoas que estão
no poder é um cacoete intelectual tipicamente moderno. Leva-se quase que como
um axioma insofismável, um princípio autoevidente, que é do interesse do poder
preservar a ortodoxia e perseguir os hereges. Alister McGrath desmonta esse
cacoete em “Heresy: A History of
Defending the Truth” [“Heresia: Uma
História da Defesa da Verdade”]. Não são raras as vezes em que os hereges é
que estão no poder, e os ortodoxos é que são perseguidos. Foi o caso da
polêmica ariana na época de Constantino. E, para não parecer que se tratou de
um desmando exclusivo desse imperador, lembremo-nos de que Atanásio, bispo de
Alexandria e oponente dos seguidores de Ário, foi por causa desse
posicionamento exilado nada menos que cinco vezes: uma pelo próprio
Constantino, outras duas por seu filho Constâncio II, mais uma por Juliano e a
última por Valente.
Só
há uma explicação possível para a tamanha persistência de Atanásio: Constantino
não estava criando uma coisa nova chamada cristianismo, mas se relacionando com
algo que já existia antes dele e continuaria a existir depois que seu governo
acabasse. Essa relação poderia ser boa em alguns sentidos e ruim em outros. E
esse algo era o cristianismo.
Constantino
alterou o modo de vida dos cristãos primitivos?
O
segundo sentido possível para a frase “O cristianismo é uma invenção de
Constantino” seria o de que, a partir desse imperador, a comunidade cristã
perdeu sua dinâmica, engessou-se. Decorre um julgamento semelhante da tese do
pacifista John Howard Yoder de que, antes de Constantino, os cristãos eram
pacifistas quase que no sentido moderno, e repudiariam a política
constantiniana – que se pretendia cristã, mas era bastante belicista. Leithart
procura demonstrar historicamente que as coisas não foram assim, e que mesmo
antes de Constantino os cristãos não se deixavam nortear unilateralmente por
algum princípio semelhante a “Jamais ore para que alguém vença uma guerra”. A
tese do pacifismo pré-constantiniano servia de ponto de partida para que Yoder sustentasse
que, de maneira geral, com Constantino o cristianismo iniciou uma paulatina
decadência. Terá sido mesmo assim?
Antes
de prosseguir, notemos que não se pode menosprezar os debates teológicos de
caráter mais teórico para afetar que esta discussão se dá entre “os verdadeiros
espirituais que preservam a dinâmica dos cristãos primitivos” e “os carnais que
apostataram do espírito cristão inicial, trocaram-no por doutrinas humanas e,
ainda por cima, estabeleceram estas doutrinas como a ortodoxia” (expediente comum entre caiofabianos). Definitivamente
não é esse o panorama real. Por exemplo, quando Caio Fábio diz que o autor da
carta aos Hebreus dá por certo que a obra de Cristo faz o Antigo Testamento
caducar, está implícito aqui um pressuposto que não pode ser depreendido apenas
de um “estado de espírito”. Trata-se de uma doutrina clara (que Caio, talvez
inconscientemente, estabelece como a ortodoxa):
o Novo Testamento anula o Antigo. Trata-se do marcionismo, que já foi declarado
como heresia pela Igreja.
É
aqui que os anticlericais se escandalizam: “Como um grupo de pessoas tem o
desplante de se autodeclarar a Igreja?
E de determinar o que é e o que não é heresia?!” A réplica é logicamente
inescapável: “Como vocês têm o desplante de se autodeclarar a verdadeira
Igreja, mais fiel a Cristo que a ‘falsa’? E de determinar que o que a outra
Igreja chama de ortodoxia é que é heresia?!” É a pergunta de Danilo Gentili que
deve ecoar sempre nas mentes de quem declara guerra à Igreja: “Mas esse
movimento de vocês não se torna também uma igreja?”
Os
atos da Igreja no sentido de definir a doutrina ortodoxa e combater os ensinos
heréticos não começaram com Constantino. Paulo e João, em suas cartas, opõem-se
duramente ao gnosticismo. Semelhantemente, se os cristãos primitivos não se
reuniam em templos, era unicamente porque a perseguição não lhos permitia;
ainda assim, o autor da carta aos Hebreus insta-os a não deixarem de congregar
nas casas que lhes serviam de templos. E, por fim, os erros administrativos da
Igreja na época de Constantino ou em qualquer outra época são erros dessas
épocas. Assim como Paulo errou ao desistir de João Marcos numa viagem
missionária. Quando a Igreja cresce, seus problemas e as consequências destes
também crescem. Devemos aprender com eles, evitando-os, porque estamos sujeitos
a repeti-los; mas sem condenar apressadamente quem originalmente os cometeu. “Aquele
que julga estar firme, cuide-se para que não caia!” Essa é a dinâmica da
Igreja. Os erros que se comete dentro dela não invalidam sua própria
instituição, não invalidam o próprio cristianismo.
Ademais.
Se por “institucionalização” ou “criação” do cristianismo se entende o
estabelecimento de uma ordem ministerial, a sistematização de uma doutrina, o
diálogo com as culturas etc., julgá-la um mal só pode ser uma piada de mau
gosto. No princípio da cristandade, é verdade, os cristãos, poucos que eram,
podiam confessar e comunicar sua fé apenas reportando-se ao fato Jesus de Nazaré:
seu nascimento virginal, seus milagres, sua morte na cruz, sua ressurreição corporal
e sua ascensão ao céu. Isso é o Evangelho: um acontecimento, um evento. É essa
a ordem, aliás, do surgimento de todas as religiões e crenças que já existiram.
Primeiro o mito (que não necessariamente é algo irreal; aqui, uso o termo
apenas no sentido de “acontecimento surpreendente” que, sendo disseminado,
impacta o imaginário de toda uma comunidade), depois – se e quando necessário –
a sistematização de sua doutrina. Foi assim que aconteceu na História porque é
assim que o funcionamento da nossa mente requer que aconteça. Mesmo doutrinas
que não partem de uma revelação – por exemplo, filosofias pagãs – só puderam
surgir depois de a comunidade já compartilhar de um imaginário mais ou menos
homogêneo, com signos comuns, que permitissem-lhe a comunicação. A filosofia
grega só foi possível após o teatro grego. Platão só foi possível após Téspis.
E é a nós neste estado – rigorosamente idêntico ao dos gregos: humanos – que a
Revelação de Deus em Cristo se dirige.
Deus,
que contempla nosso estado, sabia das desventuras por sobrevir. Por isso Jesus
escolhe doze discípulos e confia-lhes intimamente Seu ensino e Sua obra. Por
isso Jesus fundou uma Igreja, e prometeu que as portas do Inferno não
prevaleceriam contra ela. Por isso Ele prometeu estar com Seus seguidores todos
os dias até a consumação dos séculos. Por isso incentivou-os à vida em
comunidade, prometendo que onde estivessem dois ou três reunidos em Seu nome
ali Ele estaria presente. Por isso prometeu enviar o Espírito Santo, que
lembraria aos discípulos de tudo o que Ele disse. Não, eu sozinho não sou
Igreja. Você sozinho não é Igreja. Eu individualmente posso ser templo do Espírito;
você individualmente pode ser templo do Espírito. Mas apenas nós somos Igreja. Nós, em conjunto, que
somos movidos pelo Espírito e confessamos aquEle que desceu do Céu e subiu novamente
para nos preparar lugar, é que somos Igreja. Sim: o cristianismo é uma invenção
de Jesus.
Não
podemos imputar-Lhe a nossa lastimável falta de consciência histórica. Ele
sabia que, com o tempo, a comunidade de crentes cresceria, o acontecimento
fundador ficaria mais distante no tempo, os novos crentes teriam dúvidas sobre
o que pode e o que não pode se preservar das culturas de que eles provêm, e seria
preciso sistematizar o acontecimento doutrinariamente para estes. Concílios lhe
parecem antidemocráticos? Os discípulos foram quem os inventaram. Os judeus
convertidos tinham dúvidas quanto ao que fazer com suas práticas cerimoniais e
os apóstolos do primeiro século realizaram, para as responder, o Concílio de
Jerusalém – está em Atos 15. A ordem ministerial (com diáconos, presbíteros,
pastores) parece-lhe tirânica? Paulo, mais de uma vez, escrevendo aos efésios e
escrevendo aos coríntios, fala dos ministérios que Deus provê à Igreja. O mesmo
Paulo, também, visitando Atenas, fala aos filósofos estoicos e epicureus, no
Areópago, que “o Deus desconhecido” que eles veneravam era o que ele lhes
anunciava. Desse diálogo com uma cultura surgia uma civilização, a nossa
civilização, a civilização que nos permite amar tanto quanto hostilizar a Igreja.
Agora parece-lhe que foi Paulo, e não Constantino, quem estragou o que Cristo
fundou? Friedrich Nietzsche já o dissera.
Sim,
leitores. Como se vê, Caio Fábio não é o inventor da crítica ao cristianismo.
Mas, quando ele diz que o inventor do cristianismo é Constantino, o que no
fundo sua frase implica é que ele, Caio Fábio, que a pronuncia, e só ele, é que
é capaz de perceber o verdadeiro significado da fé cristã, que Constantino
deturpou e que desde então ninguém mais encontrou. O que no fundo sua frase
implica é que Caio Fábio inventaria algo melhor do que o que Constantino
inventou. Sabemos: nem Constantino inventou o cristianismo, nem Caio Fábio – ou
eu, ou você – poderia inventá-lo. O imperador foi parcialmente responsável por
alguns erros administrativos da Igreja, sim, mas nisso ele também é vítima de
sua época, da dinâmica histórica, da condição humana. A fé cristã é a mesma
antes e depois de Constantino. A Igreja errava antes do imperador e continuou
errando após ele. Acertava antes do imperador e continuou acertando após ele. A
Igreja é um drama dentro do drama que é a História humana. Ela necessariamente
implica o cristianismo. Jesus a fundou, e a tem guiado há dois mil anos,
revitalizando-a sempre no Espírito Santo, que nos faz lembrar do bendito
acontecimento Jesus, orientando-a na sistematização da doutrina – para o que
contamos com a incomparável ajuda das Escrituras Sagradas – e fortalecendo-a
contra o surgimento de heresias. É precisamente por causa do homem que a Igreja
existe. E, na medida em que um cristão é cristão, ele também está na Igreja, e
coopera com o cristianismo. Caio Fábio só pode dizer que “o cristianismo é uma
invenção de Constantino” porque um dia o cristianismo lhe introduziu a algum
conhecimento. No limite, porque a Igreja sobreviveu a Constantino. A Igreja nos
afeta enquanto cristãos e enquanto humanos. E só se pode negá-la porque ela é
viva.
A multidão a-igreja-é-imperfeita odeia
Constantino e noções de cristandade, mas eles querem que a igreja seja patrona
das artes, e execute programas educacionais, e faça unir o mundo em paz e amor.
(DeYOUNG,
Kevin; KLUCK, Ted. “Why We Love the
Church: In Praise of Institutions and Organized Religion” [“Por Que Amamos a Igreja: Em Louvor às
Instituições e Religião Organizada”]. Chicago: Moody Publishers, 2009, pp.
87-88)
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