domingo, abril 26, 2015

A cidade de Deus não é feita de cartas: religião em "House of Cards"

Por André Quirino

Dentre os motivos que podem levar alguém a negar a existência de Deus ou se opor a Ele, há os que são expressão de incultura – críticas ao papel da religião na História, decepção com a má conduta de conhecidos religiosos etc. –, há os que são expressão de covardia – a dificuldade de conceber uma transcendência a este mundo, o desconforto em reconhecer que o Universo e cada ser vivente estão subordinados a uma meta-história etc. – e há os que são expressão de pura e simples imoralidade – dentre os quais eu destacaria, justamente, a sustentação do argumento do mal, a negação das teodiceias.
Sim, pois a crença oculta de quem diz “Com tanto mal no mundo, não pode haver Deus”, “Com tanto mal no mundo, Deus não pode ser bom” ou “Com tanto mal no mundo, Deus não pode ser poderoso”, é “Se eu governasse o mundo, tudo faria sentido”, o que traz implícita “Só faz sentido aquilo que cumpre meus propósitos”. E não há âmbito da vida em que a tentação dessa crença seja tão pulsante quanto na política. Mas isso enquanto teoria é raso, soa a tergiversação. Somente uma história bem narrada, de personagens complexas, tornará sua pertinência patente.
Se é verdade que boas produções de TV tendem a estrear já mostrando a que vieram, e que House of Cards – neste caso, uma série de internet, mas, de qualquer forma, uma das séries mais populares em todo o mundo atualmente – é uma boa série (como eu julgo que seja), a primeira cena da produção da Netflixdeveria nos fazer buscar questionamentos, que ela pretenderia provocar, situados além do plano dos meros bastidores políticos. Quando um carro desgovernado atinge o cão de um vizinho e o deputado Francis Underwood vê o animal agonizando, é difícil precisar o sentimento que inspira o personagem, mas certamente não se trata de compaixão. A suspeita natural é de que Francis tem prazer em causar dor; a certeza inevitável, que nos assalta quando Francis recebe os donos do cão desolados, é de que estamos perante um cínico. Mas com uma vantagem: um cínico que dialoga com o espectador e, nesses diálogos, não se furta à sinceridade. No primeiro deles, Francis vaticina:

Há dois tipos de dor: a dor que o torna mais forte e a dor inútil, que se reduz a sofrimento. Não tenho paciência com inutilidades.

A isso veio House of Cards: discutir as posturas que se pode adotar num mundo em que a dor e o sofrimento são um fato.
Nada mais oportuno: a política define-se como uma conciliação de vontades, uma desastrada mas persistente busca por justiça em meio ao caos que o mal opera neste mundo.[1] Desde os primórdios, essa é uma atividade que parece se subordinar a uma administração de justiça superior e perfeita, ainda que incompreensível: o poder político deveria prestar contas a Deus, que o legitima. Num culto em Washington que sucedia o fim de um pleito eleitoral, Francis é um dos políticos a tomarem a palavra. E ele diz (ao público presente, não a nós, espectadores), ecoando o ensino de Jesus: “Aquele que se humilhar será exaltado”.
Profunda é a sabedoria bíblica: poder verdadeiro tem aquele que reconhece a própria fraqueza; o único fundamento firme para a autoridade é a humildade. Mas não é esta a motivação de Francis em sua busca pelo poder: simplesmente ele foi traído pelo presidente eleito, que lhe prometera o cargo de secretário de Estado caso o apoiasse durante a corrida presidencial, e agora, dado o descumprimento da promessa, se vinga com ambição redobrada. Ele almeja um poder que, de tão elevado, é inescrutável. Underwood só conhece o poder comouma abstração.
            Eu disse que Francis é um cínico, mas não sejamos apressados: estamos lidando com um cínico profissional. E um traço característico da estratégia de cínicos dessa estirpe é se aproximar da sinceridade o máximo possível, não desperdiçando oportunidades de pronunciar verdades inconvenientes, ganhando assim a confiança do ouvinte, para então poder-se colocar na posição de quem faz o que deve ser feito – no caso de Francis, colocar-se na posição de alguém que se tornou frio por abnegação, fazendo dessa estratégia a sua própria teodiceia, sem assumir que não tem o controle das situações. Ainda na cena em que sacrifica o cãozinho, Francis arremata:

Momentos como este exigem alguém que aja, que faça o desagradável, o necessário.

            Dois episódios depois, em situação mais grave, Underwood destila todo seu profissionalismo na arte do cinismo. Em sua cidade natal, ele precisa convencer um pai e uma mãe enlutados a não o processarem pela morte de sua filha. No primeiro culto que se seguiu ao evento trágico, Underwood subiu ao púlpito para discursar:

Sabem sobre o que ninguém quer falar? O ódio. Eu conheço muito bem o ódio. [E, após uma descrição detalhada desse sentimento:] “Eu O odeio, Deus! Eu O odeio!” Não me digam que nunca disseram essas palavras antes. Sei que já. Todos nós já as dissemos se sentimos alguma vez uma perda tão abaladora. Há dois pais aqui esta manhã que já sentiram essa dor. A dor mais terrível de todas: a de perder um filho. Se levantassem agora e berrassem aquelas palavras, poderíamos culpá-los? Eu não poderia. Pelo menos o ódio deles eu posso entender. No entanto, o temperamento de Deus, Sua crueldade, mal posso começar a...

E conta como experimentou o ódio contra Deus quando seu pai morreu aos 43 anos – uma mentira, como confessa ao espectador: seu pai morreu jovem, sim, mas isso não lhe constituiu nenhum sofrimento. Aqui Francis se aproxima perigosamente da sinceridade, revelando um sentimento que de fato o acompanha, embora com maior frequência e por motivos menos justificados do que os alegados: é assim que consegue demover os pais da jovem falecida da intenção de processá-lo. Mas, depois de prosseguir com um discurso recheado de versículos bíblicos, retorna a uma distância segura da sinceridade, concluindo com uma falsa aceitação da verdadeira teodiceia:

Jamais entenderemos por que Deus levou Jessica, meu pai ou qualquer pessoa. Mas, embora talvez Deus nunca nos dê a resposta, Ele nos deu a capacidade de amar. Nossa tarefa é amá-Lo sem questionar Seu plano.

E ora, com a voz embargada por lágrimas cínicas.


            Eu mesmo pensei estar exagerando o papel desempenhado pela religião na trama de House of Cards, até que revi “inspecionalmente” (como se faz num dos modos de leitura elencados por Mortimer Adler) todos os episódios da série. E, conquanto nos nove episódios seguintes ao último que mencionei acima não haja referências expressas à religião – e esse não seja o único intervalo de tal tipo –, é nos momentos cruciais que a referência explícita se dá. Depois de praticamente abrir a série, ela encerrará a primeira temporada. No episódio 13, Underwood vai à igreja e começa orando:

Sempre que falei com o Senhor, o Senhor não me respondeu. Considerando nosso desdém mútuo, não posso culpá-lo pelo silêncio.

            Mas se dá conta: “Talvez eu esteja falando com a pessoa errada”.    E, agora virando-se para baixo: “Você consegue me ouvir? Você é capaz de linguagem ou só entende depravação?”. Então encerra, professoral:

Não há nenhum conforto, nem acima nem abaixo. Apenas nós pequenos, solitários, lutando, brigando uns com os outros. Eu oro para mim mesmo e por mim mesmo.


Como observa Amy Lepine Peterson, no artigo “House of Cards: the king is dead” (“House of Cards: o rei está morto”): “No episódio final [da primeira temporada] de House of Cards, numa cena que de tão similar parece uma referência intencional a “Two Cathedrals”[2], Francis Underwood também ora sozinho em uma catedral. Ele está claramente desesperado – não porque se sinta culpado pelos crimes que cometeu, mas porque receia que seus planos de conquistar mais poder falharão”.
É claro: o poder, por abstrato que seja, ainda mais o poder como forma de vingança, como é o caso aqui, é a alternativa encontrada por Underwood exatamente à nossa contingência, às incertezas da vida. E isso quem diz é o criador da série e autor da maioria de seus episódios, Beau Willimon. Numa conversa com o pastor protestante Andrew Foster Connors, ocorrida em outubro de 2014 na Igreja Presbiteriana da Brown Memorial Park Avenue, em Baltimore, Maryland, e narrada aqui, ele diz: “O que há de tão sedutor no poder, para Frank? Penso que se trate do fato de a única certeza na vida ser que vamos morrer. Assim, num nível profundo, Underwood e outros políticos na série estão brincando de Deus no pouco tempo que têm de vida”.

Durante toda a segunda temporada, talvez a religião tenha um papel maior a desempenhar na história de Doug Stamper e a jovem Rachel, que ignorarei aqui por uma questão de espaço[3], do que propriamente na trajetória de Frank Underwood – a não ser por sua escolha, no episódio 11, de uma igreja como esconderijo para uma conversa ilícita que travou com o lobista Remy Danton. O desdém pela “casa de Deus” (como a igreja é supersticiosamente concebida pela mentalidade secular) – agravado, quase ao patamar do prazer de afrontar, pelo fato de Frank folhear uma Bíblia enquanto conversa com Remy – é trivial. Podemos, sem prejuízo para o argumento, passar ao largo desse episódio e pular diretamente para a terceira temporada da série.
E aqui encontraremos imagens-chave do nível religioso da história deHouse of Cards, imagens vivas cujo simbolismo quase salta da tela.


            No quarto episódio, assim como no 13º da primeira temporada, Frank Underwood vai à igreja com a intenção de orar (por si mesmo e para si mesmo, sempre). Desta vez, antes de ficar a sós, ele tem um diálogo breve, mas profundo, com o pároco. Confessa, referindo-se ao Cristo cuja imagem, na crucifixão, está ao seu lado: “Por que Ele não lutou? Por que se permitiu ser sacrificado? Eu entendo o Deus do Velho Testamento, cujo poder é absoluto, que reina pelo medo, mas... Ele...” A resposta do pároco é brilhante: “Você não foi escolhido, Sr. Presidente. [E, apontando para o Cristo:] Só Ele foi”.[4]
            Como tenho sustentado, o motivo que leva Frank a se opor a Deus só pode ocorrer a pessoas imorais: ele nega as teodiceias clássicas em favor de uma teodiceia própria, em que ocupa o lugar de Deus e o perverte: o mal passa a fazer sentido quando lhe traz benefícios pessoais. Se tudo o que há somos “nós pequenos, solitários, lutando, brigando uns com os outros”, como é que alguém pode simplesmente se entregar à morte? Essa renúncia parece-lhe, antes de tudo, uma afronta a todos os demais, que, para ele, precisam se esfacelar mutuamente, não têm outra escolha senão enfrentarem-se com ferocidade. E tal necessariedade é implicada da urgência de se realizar os próprios desejos, a qualquer custo. No fundo, sua pergunta é: “O que Ele tem de especial para não se dobrar à nossa natureza de luta? Quem Ele pensa que é para escapar à tradição de nos guerrearmos? E por que as pessoas veneram covardes como Ele, e não corajosos como eu?”. E a resposta do pároco é o escândalo cristológico, o absurdo das teodiceias: Cristo é o eleito de Deus. O que significa dizer: antes que houvesse mundo, e portanto antes que o primeiro homem decidisse pecar, Deus já decidira se sacrificar. O que, por sua vez, significa: muito antes que você iniciasse sua busca por poder, e muito depois que você a terminar, Francis J. Underwood, Cristo já era e será escolhido. Não é verdade que em certos momentos de dor alguém precisa fazer a coisa certa, muito menos que esse alguém é você, e menos ainda que essa coisa é o mal: a única coisa que precisava ser feita pelo único homem já o foi. O momento crucial, como o nome indica, é o representado naquela escultura no altar da igreja. Como sabemos, Underwood conhece a instrução deixada pelo Cristo: humilhar-se, amar. Mas ele não pode conceber algo como um evangelho, uma boa notícia. Para ele, tudo que é pronunciado está sendo vendido, é uma moeda de troca, em última instância é a armadilha de um rival. E, quando o pároco se ausenta do templo, Frank diz ao crucificado:

Amor? É isso que está vendendo? Bem, eu não caio nessa.

E cospe no Cristo, como um fariseu do século I. Aliás: com a convicção esclarecida que faltou aos fariseus do século I. Estes cuspiram em Cristo por pensarem tratar-se de um homem petulante. Frank, o petulante, cospe no Cristo com a convicção de quem comete um agravo contra Deus. A face do Cristo é de uma tristeza compadecida, como só o eleito de Deus poderia esboçar. Frank não tem tempo para se entristecer. Ao tentar limpar o cuspe, a escultura cai e se despedaça. Frank pega a orelha quebrada: “Bem, Deus me ouve agora”. Talvez seja isso o que falta ao cínico para que possa amar a Deus: ele não tem o dom da tristeza.


            Além da pura trajetória política de Francis, há uma trama central do enredo que serve para escancarar os porões da verdadeira personalidade de nosso anti-herói e que, na terceira temporada, é alcançada decisivamente pelo elemento religioso: falo do casamento de Frank e Claire. Estes são, em geral, parceiros nas empreitadas com vistas ao poder, exceção um para o outro à regra da rivalidade generalizada. Trata-se, nalguma medida, dum oásis de hombridade em meio à conduta reprovável de Frank. Mas o casamento é sinuoso, em não poucos momentos o empenho em conquistar poder, que o sustenta, faz estremecer a relação, e tal como um oásis é normalmente percebido primeiro numa miragem, esse matrimônio é bruxuleante: Frank e Claire sentem a necessidade de, a cada sete anos, renovar seus votos, caso cheguem até lá.


O casamento é o melhor exemplo, no âmbito das relações humanas, da necessidade de cuidado meticuloso e renúncia constante.[5] Em religiões orientais como o budismo e o hinduísmo, a dedicação ascética a um trabalho delicado, conjugada à disposição a uma renúncia resignada, está representada nos rituais que cercam a mandala. Esta é uma ilustração de cores vibrantes, formas geométricas e simetrias, vagarosamente confeccionada com areia por monges. Concluída a ilustração, ela é ritualisticamente desfeita pelos monges e o material que a compunha é depositado num recipiente para depois ser despejado num rio.
            No sétimo episódio da terceira temporada, um intercâmbio cultural leva monges tibetanos à Casa Branca. Eles passam um mês ali, empenhados nos rituais de confecção e descarte de uma mandala. Frank, que não tem paciência com inutilidades, olha para o trabalho dos monges com ar de deboche.


Claire, a figura do casal que é capaz de em alguns momentos prestar atenção às inutilidades, interessar-se pelo belo, comover-se com expressões de humanidade, encanta-se com o trabalho dos monges.


            Cumpre relembrar: Frank e Claire sentem-se traídos não quando o parceiro se envolve sexualmente com outra pessoa (lembremo-nos da conivência de Claire com a relação entre Frank e a jornalista Zoe Barnes e de Frank com a relação entre Claire e o fotógrafo Adam Galloway), mas quando o parceiro falha na execução da sua própria parte do plano de conquistar poder ou o atrapalha na execução da parte que lhe cabe. A ONG de Claire e os projetos de lei do deputado Frank, e depois Claire como embaixadora da ONU e a política externa do presidente Frank, é que catalisam os atritos mais desgastantes na relação do casal. Mas Frank, sempre detentor de maior poder político, às vezes incide numa traição em que Claire, dada sua posição, jamais poderia incidir: é quando sua parte do plano não reserva nenhum papel ativo a ser desempenhado por Claire, senão o de uma subalterna, e, mesmo em prejuízo à parte do plano que cabe a ela, por muito tempo dedica todo o esforço à sua execução. Neste ponto, a simples recusa de Claire a participar de um evento político durante as disputas eleitorais torna-se para Frank, injustificadamente, uma traição grave. E é somente reagindo a tal traição que ele é capaz de ser agressivo e ao mesmo tempo olhar nos olhos de Claire: ele aperta seu rosto, machucando-o, e aproximando-se com um olhar desafiador, exige da esposa obediência.
            E, enquanto o episódio narra a renovação do matrimônio de Frank e Claire na igreja, os monges tibetanos desfazem-se da mandala.


Além do olhar de deboche, a outra iniciativa tomada por Frank em relação à mandala foi presentear a Claire com uma fotografia da ilustração, acompanhada de um bilhete em que se lia: “Nada dura para sempre – exceto nós”. Em última análise, trata-se da mesma postura: deboche. O matrimônio, a que Frank não dedica nem uma fração da meticulosidade com que os monges confeccionaram a mandala, deveria durar “para sempre” (i.e., até a morte) – mas tal não se daria, a menos que Frank se lançasse ao cuidado e à paciência dos tibetanos. Claire também não é uma esposa exemplar, mas, principalmente enquanto é ignorada por Frank em seus planos, abre-se à beleza, valoriza as inutilidades e evita embates com o marido, que é tão claramente avesso a tais ideais.
O que faz com que Frank acredite que sua relação com Claire escape à lei da finitude, se ele não trabalha para tanto? Essa é uma crença supersticiosa, de alguém que foi cegado pela ânsia de poder: a manutenção desse matrimônio, por peculiar que ele seja, serve acima de tudo para alimentar seu orgulho, para evitar problemas desnecessários enquanto objetivos “maiores” lhe ocupam toda a mente, para provar a si mesmo que é um líder. O casamento entre Frank e Claire fundamenta-se no poder abstrato, e por isso é um castelo de cartas.


Sem saber, Frank impulsionou o sopro que faria desmoronar o castelo de seu casamento quando presenteou sua esposa com uma fotografia da mandala. Sua conduta se baseia na teodiceia pervertida, na ilusão de que faz, e só faz, o que deve ser feito. Quando olhou altivo para o verdadeiro eleito, sua reação foi cuspir. Mas quando, no último episódio, sua esposa olha abatida para a fotografia da mandala, que lembra a vanidade da vida, isso lhe inspira a livrar-se de quem foi iludido pelo poder abstrato. A reação de Frank perante a morte é agarrar-se ao poder, a reação de Claire perante a morte é livrar-se de Frank. Quando Claire faz o que Frank não tem paciência de fazer – olhar para as inutilidades –, ela não pode mais suportar estar a seu lado.

Creio ter assim apresentado uma chave interpretativa esclarecedora, embora obviamente não a única possível, nem necessariamente a mais importante, para a série House of Cards. No mundo em que a dor e o sofrimento são um fato, e em que a política é um exercício de conciliação de vontades, uma narrativa inteligente e de personagens complexas nos escancara o estado natural da cidade dos homens: é um estado de rivalidade mútua, cinismo público e inimizade contra Deus. O homem que foi cegado pelo poder abstrato não é capaz de encarar a derrota, e por isso mesmo nega as teodiceias para criar a sua própria, pervertida, mágica, supersticiosa, em que faz sentido tudo que cumpre seus propósitos. Mas há um ponto fraco nesse modo de vida: basta olhar para as inutilidades, a beleza, a tristeza – com as quais ele não tem paciência –, para ficar clara sua futilidade. Toda construção que tem o poder abstrato por fundamento é um castelo de cartas, que haverá de ruir. Já a cidade de Deus não é feita de cartas. Ela prescinde de nossos interesses, estratégias e acordos. Suas colunas são firmes, e num de seus arcos está escrito: bem-aventurados os que choram. “Aquele que se humilhar será exaltado”.



[1] Pareço não estar distante da posição de Beau Willimon, o criador da série:https://www.youtube.com/watch?v=i8j_7vchHEU
[2] “Duas catedrais”, último episódio da segunda temporada da série The West Wing (A Ala Oeste, em tradução literal; Nos Bastidores do Poder, como foi traduzido no Brasil pela Warner), transmitido em maio de 2001 pela NBC, em que o personagem Presidente Bartlett passa por uma crise de fé, duvidando não da existência de Deus, mas de Sua bondade.
[3] Apenas faço questão de apontar para o contraste de um quadro que exiba, num lado, a relação de Underwood com Deus e, no outro lado, a relação da desesperada Rachel com Deus: esta, que é um alvo indireto (o que não significa afetado menos contundentemente) das maldades de Underwood e seu capacho Doug, que não é alguém em poder de causar grandes males a grande quantidade de pessoas, mas alguém rodeada de tragédias causadas por pessoas mais poderosas, se compraz fervorosamente nas teodiceias.
[4] Noutro ótimo artigo sobre a religião em House of Cards, “‘Idon’t buy it’: the Gospel according to Frank Underwood” [“‘Eu não caio nessa’: o Evangelho segundo Frank Underwood”], Cathleen Falsani diz – e eu endosso: “Que bela articulação da teologia cristã! Na primeira vez em que assisti ao episódio, eu literalmente bati palmas. É tão raro atualmente que a cultura popular tenha contato com boa teologia”.
[5] Não são nada irrelevantes na construção do personagem o fato de Frank não conseguir fazer sexo com Claire olhando para o rosto dela e sua afeição (no que é seguido pela esposa) por formas “coletivas” de sexualidade. Mas, embora numa cultura cujas mentes são maciçamente tributárias a Freud as preferências sexuais tendam a ser alçadas à posição de características sumamente reveladoras do caráter dum sujeito, creio que o traço da personalidade de Frank revelado por aqueles dados de sua atividade sexual é também, e mais claramente, revelado por sua conduta como marido fora da cama.

2 comentários:

Joao Cruzue disse...

Ótima reflexão, André. Não tive tempo ainda para ver no Netflix esta série muito comentada. Estava lendo 1808 do Laurentino Gomes e Fazendo uma leitura de prospecção na I Carta aos Tessalonicenses.
Mudando de assunto,ou deixar um convite: Planeje um tempo para almoçarmos juntos no Centro de Sampa.

André Quirino disse...

Grato, querido João.
Recomendo a série. A trilogia do Laurentino, ainda não li; está na fila.

Obrigado também por mais esse generoso convite. Temos de marcar esse almoço mesmo. Por acaso ainda está fazendo aquele curso na Cidade Universitária?

Abraços.