Por André Quirino
Postado originalmente no blog Teologia Pentecostal
Que a chamada pós-modernidade seja,
na maioria de seus aspectos, uma radicalização das crenças e costumes modernos,
boa parte dos analistas culturais tem sido propensa a concordar. Mas há, sim, e
em decorrência mesmo dessa radicalização, rupturas significativas entre a
autoimagem sustentada pelo homem moderno e a imagem que o homem pós- ou
hiper-moderno forma de si. Grosso modo, talvez possamos traçar que
na modernidade o homem se enxergava como um observador científico, habilitado a
detectar objetivamente as deficiências do mundo e propor invenções que as
solucionariam. Já o homem hiper-moderno carrega consigo uma melancolia pelos
morticínios do século XX e uma descrença no poder esclarecedor da ciência.
Se, por um lado, a Igreja deve
cuidar para que a desilusão hiper-moderna não desague num antirracionalismo
pagão (daí o clamor do papa João Paulo II, na encíclica Fides et ratio, de 1998, por
que a Revelação seja anunciada como o "ponto de enlace e confronto"
entre a filosofia e a fé, a esperança de que o ser humano possa conhecer a
Verdade), por outro lado, me parece que tal disposição de espírito está sendo
resultada pelo próprio ceticismo moderno, que carrega em si a semente de sua
superação. É como na máxima de Chesterton: "Para responder ao cético arrogante,
não adianta insistir que deixe de duvidar. É melhor estimulá-lo a continuar a
duvidar, para duvidar um pouco mais, para duvidar cada dia mais das coisas
novas e loucas do universo, até que, enfim, por alguma estranha iluminação, ele
venha a duvidar de si próprio". O século XX propiciou-nos muitas estranhas
iluminações, trazendo-nos a este estágio em que começamos a duvidar de nós
mesmos.
Mas a descrença em si não pode ser
o estágio definitivo. Como demonstra o psicólogo judeu, aluno de Freud, Viktor Frankl,
com sua Logoterapia (em grande parte desenvolvida durante sua passagem num
campo de concentração), o homem está sempre em busca de sentido. E, se há algo
que, de um modo geral, confere sentido à vida do homem hiper-moderno, isto é a narrativa. Queremos sempre nos
ver envolvidos numa história que nos transcenda. Já que a verdade última não
está nem no objeto externo analisado friamente, nem no eu pensante solitário,
buscamo-la na relação.
Prezamos pela interação (ainda que virtual), o cinema e a teledramaturgia são
as formas de arte que mais conquistam admiradores, utilizamos as redes sociais
da internet para exibir ao mundo a nossa própria narrativa, personalizada como
a bem queremos.
Neste cenário, o materialismo, que
fora até então o grande inimigo da fé, vai perdendo sua força. Ao analisar
objetos brutos isolados para explicar seu funcionamento, ele abstrai da
condição humana seu caráter temporal, histórico, dramático. Exige das doutrinas
religiosas um naturalismo que nem o próprio mundo nos autoriza a sustentar.
Torna-se evidente que as religiões podem e devem oferecer respostas absurdas
porque a própria condição humana é absurda. Para os padrões de quem de repente
se vê lançado num mundo, caminhando entre seres semelhantes, relacionando-se
com eles, participando de uma história, construindo uma narrativa, ser criado e
redimido por um Deus todo-poderoso é totalmente coerente. Não pode
dogmaticamente chamar mito a tal narrativa cósmica quem irremediavelmente vive
no sonho da existência e da ação. A vida é um caminho sem volta que, se pode
ser desfrutado em vão de algum modo, certamente não o será por quem concebê-la
na plenitude de sua absurdidade.
A teologia pentecostal pode
emergir, neste contexto, como uma abordagem cristã particularmente atraente,
por dois motivos.
Em primeiro lugar, o
pentecostalismo sadio tende a ressaltar a importância da comunidade. Em Atos 1,
Cristo pede que os discípulos estejam reunidos até que o Espírito desça sobre
eles e, em Atos 2, Lucas realça o impacto coletivo daquele batismo. Em 1
Coríntios 12-14, Paulo esclarece que a finalidade última dos dons espirituais é
a edificação da igreja. A experiência pentecostal se dá, portanto, em
comunidade, e, na medida em que o teólogo pentecostal é aquele que desenvolve a
doutrina do Espírito a partir da atualidade de uma experiência palpável, ele
pensará e fará seu anúncio a partir de uma vivência comunitária concreta. Mais
do que isso: a comunhão e o carisma que devem ser evidentes numa igreja
pentecostal serão, se biblicamente orientados, um reflexo - ainda que
defeituoso - da pericorese trinitária, isto é, da dança, da harmonia perfeita e
bela que há na Trindade Santa. A experiência pentecostal numa igreja insere
seus membros numa relação de profunda intimidade, faze-os reconhecer a si
próprios como participantes de uma mesma narrativa.
Em segundo lugar, a experiência da
manifestação dos dons espirituais leva cada crente individualmente a se
perceber em comunhão com o Deus triúno que, mais do que personagem de uma
história, é a condição de possibilidade para qualquer narrativa. A experiência
pentecostal, ao mesmo tempo em que cumpre uma promessa proferida por Cristo e
repete um padrão estabelecido pela Escritura, é sempre atual e única. Assim,
ela ratifica a verdade da Revelação cristã (Paulo estabeleceu o dom de línguas
como um sinal para os descrentes) numa relação interpessoal, a partir dum
batismo naquEle que Cristo, que se declarou a Verdade, predisse que viria para
testificar Sua pregação. O testemunho do Espírito remeterá o cristão à verdade
das Escrituras e do Logos divino, sendo o ponto de enlace
entre a narrativa e a Revelação eterna, o ponto de encontro com aquEle que
criou o Universo, determinou seu funcionamento e hoje nos dá a ciência para
perscrutá-lo.
O revestimento do Espírito capacita
a Igreja, desde a Era Apostólica, a testemunhar o evangelho de Cristo ao mundo
com poder e autoridade. A marca de uma teologia e de uma igreja pentecostais,
destarte, deve ser a de quem não desacreditou totalmente da capacidade de conhecimento
por parte do homem, mas se relaciona pessoalmente com aquilo que confere
razoabilidade ao mundo: o Deus triúno.
Essas são considerações
introdutórias sobre um assunto amplo e instigante. Multiplicam-se os livros e
teses acadêmicas que o têm por objeto. Espero voltar a ele em breve numa
resenha de "Thinking in Tongues: Pentecostal Contributions to Christian
Philosophy" ("Pensando em Línguas: Contribuições Pentecostais
para a Filosofia Cristã", em tradução livre), de James K. A. Smith
(livro de 2010). Que me consta, esse debate ainda não encontrou solo no Brasil.
É desejoso que encontre. Que este texto sirva de incentivo a que os cristãos de
confissão pentecostal se prontifiquem ao labor teológico-filosófico e a que os
crentes de outras confissões considerem o que estes irmãos, a partir de sua
experiência comunitária e de sua rica tradição teológica, têm a acrescentar ao
pensamento cristão.
3 comentários:
Grande André! Texto bem esculpido, boa volta às aulas para você.
João,
Só hoje vi seu comentário. Muito obrigado.
Grande abraço!
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