quinta-feira, outubro 16, 2014

A resposta pentecostal à condição pós-moderna

Postado originalmente no blog Teologia Pentecostal

Que a chamada pós-modernidade seja, na maioria de seus aspectos, uma radicalização das crenças e costumes modernos, boa parte dos analistas culturais tem sido propensa a concordar. Mas há, sim, e em decorrência mesmo dessa radicalização, rupturas significativas entre a autoimagem sustentada pelo homem moderno e a imagem que o homem pós- ou hiper-moderno forma de si. Grosso modo, talvez possamos traçar que na modernidade o homem se enxergava como um observador científico, habilitado a detectar objetivamente as deficiências do mundo e propor invenções que as solucionariam. Já o homem hiper-moderno carrega consigo uma melancolia pelos morticínios do século XX e uma descrença no poder esclarecedor da ciência.

Se, por um lado, a Igreja deve cuidar para que a desilusão hiper-moderna não desague num antirracionalismo pagão (daí o clamor do papa João Paulo II, na encíclica Fides et ratio, de 1998, por que a Revelação seja anunciada como o "ponto de enlace e confronto" entre a filosofia e a fé, a esperança de que o ser humano possa conhecer a Verdade), por outro lado, me parece que tal disposição de espírito está sendo resultada pelo próprio ceticismo moderno, que carrega em si a semente de sua superação. É como na máxima de Chesterton: "Para responder ao cético arrogante, não adianta insistir que deixe de duvidar. É melhor estimulá-lo a continuar a duvidar, para duvidar um pouco mais, para duvidar cada dia mais das coisas novas e loucas do universo, até que, enfim, por alguma estranha iluminação, ele venha a duvidar de si próprio". O século XX propiciou-nos muitas estranhas iluminações, trazendo-nos a este estágio em que começamos a duvidar de nós mesmos.

Mas a descrença em si não pode ser o estágio definitivo. Como demonstra o psicólogo judeu, aluno de Freud, Viktor Frankl, com sua Logoterapia (em grande parte desenvolvida durante sua passagem num campo de concentração), o homem está sempre em busca de sentido. E, se há algo que, de um modo geral, confere sentido à vida do homem hiper-moderno, isto é a narrativa. Queremos sempre nos ver envolvidos numa história que nos transcenda. Já que a verdade última não está nem no objeto externo analisado friamente, nem no eu pensante solitário, buscamo-la na relação. Prezamos pela interação (ainda que virtual), o cinema e a teledramaturgia são as formas de arte que mais conquistam admiradores, utilizamos as redes sociais da internet para exibir ao mundo a nossa própria narrativa, personalizada como a bem queremos.

Neste cenário, o materialismo, que fora até então o grande inimigo da fé, vai perdendo sua força. Ao analisar objetos brutos isolados para explicar seu funcionamento, ele abstrai da condição humana seu caráter temporal, histórico, dramático. Exige das doutrinas religiosas um naturalismo que nem o próprio mundo nos autoriza a sustentar. Torna-se evidente que as religiões podem e devem oferecer respostas absurdas porque a própria condição humana é absurda. Para os padrões de quem de repente se vê lançado num mundo, caminhando entre seres semelhantes, relacionando-se com eles, participando de uma história, construindo uma narrativa, ser criado e redimido por um Deus todo-poderoso é totalmente coerente. Não pode dogmaticamente chamar mito a tal narrativa cósmica quem irremediavelmente vive no sonho da existência e da ação. A vida é um caminho sem volta que, se pode ser desfrutado em vão de algum modo, certamente não o será por quem concebê-la na plenitude de sua absurdidade.

A teologia pentecostal pode emergir, neste contexto, como uma abordagem cristã particularmente atraente, por dois motivos.

Em primeiro lugar, o pentecostalismo sadio tende a ressaltar a importância da comunidade. Em Atos 1, Cristo pede que os discípulos estejam reunidos até que o Espírito desça sobre eles e, em Atos 2, Lucas realça o impacto coletivo daquele batismo. Em 1 Coríntios 12-14, Paulo esclarece que a finalidade última dos dons espirituais é a edificação da igreja. A experiência pentecostal se dá, portanto, em comunidade, e, na medida em que o teólogo pentecostal é aquele que desenvolve a doutrina do Espírito a partir da atualidade de uma experiência palpável, ele pensará e fará seu anúncio a partir de uma vivência comunitária concreta. Mais do que isso: a comunhão e o carisma que devem ser evidentes numa igreja pentecostal serão, se biblicamente orientados, um reflexo - ainda que defeituoso - da pericorese trinitária, isto é, da dança, da harmonia perfeita e bela que há na Trindade Santa. A experiência pentecostal numa igreja insere seus membros numa relação de profunda intimidade, faze-os reconhecer a si próprios como participantes de uma mesma narrativa.

Em segundo lugar, a experiência da manifestação dos dons espirituais leva cada crente individualmente a se perceber em comunhão com o Deus triúno que, mais do que personagem de uma história, é a condição de possibilidade para qualquer narrativa. A experiência pentecostal, ao mesmo tempo em que cumpre uma promessa proferida por Cristo e repete um padrão estabelecido pela Escritura, é sempre atual e única. Assim, ela ratifica a verdade da Revelação cristã (Paulo estabeleceu o dom de línguas como um sinal para os descrentes) numa relação interpessoal, a partir dum batismo naquEle que Cristo, que se declarou a Verdade, predisse que viria para testificar Sua pregação. O testemunho do Espírito remeterá o cristão à verdade das Escrituras e do Logos divino, sendo o ponto de enlace entre a narrativa e a Revelação eterna, o ponto de encontro com aquEle que criou o Universo, determinou seu funcionamento e hoje nos dá a ciência para perscrutá-lo.

O revestimento do Espírito capacita a Igreja, desde a Era Apostólica, a testemunhar o evangelho de Cristo ao mundo com poder e autoridade. A marca de uma teologia e de uma igreja pentecostais, destarte, deve ser a de quem não desacreditou totalmente da capacidade de conhecimento por parte do homem, mas se relaciona pessoalmente com aquilo que confere razoabilidade ao mundo: o Deus triúno.


Essas são considerações introdutórias sobre um assunto amplo e instigante. Multiplicam-se os livros e teses acadêmicas que o têm por objeto. Espero voltar a ele em breve numa resenha de "Thinking in Tongues: Pentecostal Contributions to Christian Philosophy" ("Pensando em Línguas: Contribuições Pentecostais para a Filosofia Cristã", em tradução livre), de James K. A. Smith (livro de 2010). Que me consta, esse debate ainda não encontrou solo no Brasil. É desejoso que encontre. Que este texto sirva de incentivo a que os cristãos de confissão pentecostal se prontifiquem ao labor teológico-filosófico e a que os crentes de outras confissões considerem o que estes irmãos, a partir de sua experiência comunitária e de sua rica tradição teológica, têm a acrescentar ao pensamento cristão.

3 comentários:

Joao Cruzue disse...

Grande André! Texto bem esculpido, boa volta às aulas para você.

André Quirino disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
André Quirino disse...

João,

Só hoje vi seu comentário. Muito obrigado.

Grande abraço!