terça-feira, agosto 31, 2010

Memória de uma samaritana




Por Adriano Roberto

Blog do Adriano

Era a primeira vez que eu o via.

Eu ainda o veria muito.

Mas essa, sem dúvida era a primeira vez.

Se eu já o tivesse visto, lembraria.

Um homem como ele não dá para esquecer com facilidade.

Aquele final de manhã-início de tarde se parecia com tantos outros que eu já vivera; até que eu o vi.

Eu não podia culpá-lo por estar ali.

Se alguém estava fora de contexto esse alguém era eu.

Àquela hora do dia todas as outras mulheres já haviam ido buscar água e já estavam bastante adiantadas em seus afazeres domésticos.

E eu tinha tudo ainda para fazer: limpar a casa, preparar o almoço, mandar as crianças para o colégio, lavar roupas, entre outras coisas.

E eu andava tão cansada!

Tinha que me desdobrar para fazer tudo isso em tão pouco tempo.

Dispunha de apenas metade do tempo que as outras mulheres.

Mas não, podia me queixar.

Preferia isso a ouvir o burburinho que vinha de todos os cantos quando estava presente.

Não suportava mais os risinhos das meninas que acompanhavam suas mães até aqui.

Todas as manhãs elas falavam mim, elas riam de mim.

Se já não bastasse toda a dor que carregava na alma pelos fracassos dos meu cinco casamentos.

Como se fosse pouco viver com um homem que aceitava me dar casa, comida e sexo, mas se recusava a me dar seu sobrenome.

Isso sem contar os porcos nojentos que me viam como uma meretriz e tentavam a todo custo se aproveitar de mim.

Era por isso que eu ia naquela hora.

Naquele horário a fonte sempre era um local solitário.

Era mais difícil para carregar tanta água com o sol causticante do meio-dia, mas o "custo-benefício" era bem atraente: meu corpo
ficava todo arrebentado, mas em contrapartida, meu coração se acalmava.

Mas naquele dia tudo seria diferente.

Lá estava ele!

Assustei-me a princípio.

Depois o fitei longamente.

Sua aparência era a de um viajante cansado da jornada.

Havia suor em sua fronte e poeira em seus pés.

Sua boca estava esbranquiçada pela sede e sua respiração alterada pelo calor excessivo.

Carregava um cajado e um cinto cingia seus lombos.

Só não me atrevi a olhá-lo nos olhos, pois meu opróbrio me impedia de encarar qualquer homem que fosse.

Mas deveria ter feito isso, penso agora; se tivesse mirado seu olhar, veria que não se tratava de um simples camponês e com
certeza teria antecipado o fim do meu sofrimento.

Quando estava resoluta a dar meia-volta e quem sabe retornar em outra oportunidade, decidi examiná-lo novamente.

Só então, passado o susto inicial, é que tomei conta que aquele estranho nada mais era que um estrangeiro.

Pior: pelo seu modo de se vestir e pela barba, com certeza era judeu!

Essa constatação me encheu de coragem, me fez estufar o peito e ir em frente.

Por dois simples motivos: 1 - Ele não conhecia minha história de vida. 2 - Por ser judeu, era pior do que eu.

Pronto.

Meu problema vespertino estava resolvido.

Aproximei-me da fonte, e sem me importar com a presença daquele intruso, comecei a encher meu cântaro, deduzindo que aquele
senhor não ousaria me dirigir a palavra.

Na medida em que retirava a água, meu coração se agitava, pois pude perceber que o homem sentado à beira do poço não tirava os olhos de mim.

Um silêncio "sepulcral" reinava naquele local.

A angústia e o medo me tomavam de assalto, quando ouvi aquela voz doce e serena: "Você seria capaz de me dar um pouco de sua água para aplacar minha sede?".

Estribada em meu preconceito, dei a ele uma resposta cheia de arrogância: "Será que não deu para o senhor notar que eu sou uma mulher samaritana? Ou está esquecido que o senhor é judeu?".

Pensei que aquela reposta serviria como uma barreira entre aquele homem e eu.

Enganei-me.

Aquele sujeito estava disposto a me tirar do lugar-comum e não descansaria até conseguir.

"Se você conhecesse a bondade de Deus e quem é que está pedindo água para você; você é quem pediria e ele te daria água viva." - disse ele calmamente.

Minha paciência que já não andava muito grande, se esgotou por completo depois disso. "Escute aqui meu senhor..." - disse eu - "... eu vejo que você não está preparado para tirar água desse poço, principalmente por ser muito profundo, e vejo também que
não tem sequer um copo de água, de onde vai tirar água viva?" - conclui perguntando.

Sem dar tempo para que formulasse sua resposta, logo derramei sobre ele toda a minha amargura: "Quem você pensa que é? Esse poço é uma herança de família, de onde beberam nossos antepassados em especial o patriarca Jacó. Você acha que é maior que esse homem?".

Hoje percebo que perguntas como aquela que fiz sempre brotam de corações de pessoas com um histórico de vida totalmente divorciado do conhecimento de Deus.

Somente quem tem uma "subvida", quem vive chafurdando até o pescoço em um pântano nauseabundo de loucura, ou anda de braços dados com o pecado é que compara Deus a homens, como se ele não fosse o Senhor de tudo e de todos.

Essa era a minha situação.

Minhas palavras refletiam apenas o real estado da minha alma até então vazia de significado.

Apesar de minha truculência, aquele homem continuava sereno.

Seu ar de tranquilidade me dava sinais que surpresas surgiriam ainda naquela tarde.

"A água dessa fonte não é própria para matar a sede!" - falou.

E acrescentou: "Quando mencionei água viva, não me referia a esta, que por mais que você beba, sempre precisa retornar aqui para beber mais e mais, pois volta a ter sede. Eu tenho uma água que aquele que se dessedenta dela, nunca terá sede novamente. E mais: essa mesma água se fará nele uma fonte que jorra para a vida eterna.".

Era uma proposta tentadora.

Confesso que me atraiu.

Era tudo que eu precisava naquela etapa da minha vida.

Imaginei como seria bom carregar em mim mesma uma fonte e não ter que voltar ao poço todos os dias.

Apesar de não ter entendido o elo entre a fonte e a tal vida eterna que mencionara, por achar irrelevante naquele instante, aceitei sua oferta: "Ok! Você me convenceu. Essa água me trará ótimos dividendos. Eu quero dela sim.".

"Que bom que aceitou." - disse.

"Então vá chamar seu marido e voltem para buscá-la." - acrescentou.

Aquele homem tocara no ponto nevrálgico da minha existência.

Por que maltratar alguém assim? Ele não poderia simplesmente me dar a água e ponto. Tinha que agir assim tão indelicadamente?

Eu pensei em sair e trazer alguém que fingisse ser meu marido.

Pensei até em sair dali e não voltar mais.

Tinha certeza que ninguém viria atrás de mim.

Mas havia algo acontecendo durante aquele encontro que me impedia de tomar qualquer atitude extrema.

E me impediu também de continuar mentindo.

"É impossível senhor. Pois não tenho marido." - disse a ele.

Admitir isso foi um duro golpe em meu orgulho.

Tive vontade de esconder minha cabeça em um buraco.

De fato, se houvesse um buraco em minha frente, teria me lançado toda dentro dele.

Esse era o tamanho da minha vergonha.

Eu esperava ouvir uma gargalhada ou uma trilha de risadas... Não ouvi.

Meu coração se preparou para uma reprimenda... Nada!

Pelo contrário, o que ouvi foi uma palavra de elogio: "Parabéns. Eu sabia que você seria capaz de admitir essa verdade".

Fiquei confusa.

Que tipo de homem era aquele que no lugar de me execrar, me louva?

Minhas dúvidas começaram a se dissipar quando ele retomou sua fala: "Pois por cinco vezes foi casada e o homem que hoje divide a cama com você não é teu marido".

Meu alicerce começou a ruir de vez.

A base da minha construção de vida foi fortemente abalada por aquela voz que só podia ser profética.

Então me lancei aos pés daquele desconhecido, suplicando que me ajudasse em minha procura pelo Deus Verdadeiro.

Pois já o havia buscado dentro das tradições familiares e nada de encontrá-lo.

Havia pensado em viajar até Jerusalém, local indicado pelos judeus como o centro da adoração, para ver se conseguia achá-lo.

Mas a pergunta que não queria calar ainda perturbava a minha alma: Onde está Deus?

Eu precisava Dele mais do que nunca.

Anelava por Ele.

Ansiava encontrá-Lo.

Necessitava adorá-Lo.

"Onde está Deus? O senhor, que é profeta, sabe?"

Sua resposta não poderia ter sido mais contundente: "Está chegando um novo tempo em que as tradições não vão mais ditar as regras de adoração ao Pai. Aliás, já chegou a hora em que as únicas regras para que os verdadeiros adoradores adorem ao Deus Vivo são essas: em espírito e em verdade! Deus não se limita a pontos geográficos sejam eles montanhas ou templos. Deus é Espírito e por isso só aceita que seus filhos façam isso de forma espiritual e verdadeira."

Enquanto eu digeria essas palavras, ele me deu a chave da vida: "Pessoas com essas características estão sendo procuradas pelo Pai."

Essa revelação derrubou todas as minhas fortalezas.

Meu coração irascível e desesperadamente corrupto de desfez como "manteiga derretida" diante daquelas palavras poderosas que ecoaram dentro mim: "Deus está te procurando! Deus está te procurando! Deus está te procurando!"

Minha procura havia terminado.

Totalmente convencida daquela verdade, decidi encerrar a conversa e seguir meu caminho, certa de que quando o Messias viesse
nos contaria todo o resto e nos ensinaria o caminho de Deus.

Disse isso ao peregrino e me despedi desejando-lhe boa viagem.

Virei-me para apanhar meu cântaro e partir quando ouvi sua voz da forma mais maravilhosa: "Eu sou o Cristo. Eu, que estou
falando contigo!"

Meus joelhos fraquejaram e minhas mãos estremeceram; meus olhos marejaram e minha voz ficou embargada se recusando a sair.

"É ele, o Cristo de Deus! É o salvador, eu o encontrei!" - disse a mim mesma.

A beleza daquela cena ainda está gravada em minha retina.

A pureza do seu olhar e a doçura da sua voz ainda retumbam em minha alma, me fazendo descansar no Deus da minha vida.

Depois disso não pude falar logo com ele, pois um grupo de amigos seus veio ao seu encontro trazendo sua comida.

Extasiada de contentamento e de alma lavada, corri até a cidade para dar as boas novas a todos os que encontrasse pelo caminho.

"Achei o Messias - dizia eu - Vinde e vede."

Quando o reencontrei mais tarde, ele me disse que ainda não havia tido fome, pois estava saciado pelo simples fato de estar fazendo a vontade do Pai.

Ele ficou conosco ainda por dois dias.

Não fez nenhum sinal extraordinário como costumava fazer por onde passava.

Não curou nenhum paralítico nem ressuscitou nenhum morto, mas tudo o que disse mudou nosso modo de encarar a vida e nos trouxe consolo e salvação.

Ele seguiu seu caminho juntamente com seus amigos.

A nós, restou a certeza de que aquele peregrino é verdadeiramente o Cristo, o Salvador do mundo!


Bragança Paulista, 30.08.2010



Concurso Literário Blogueiro Cristão 2010



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